Soa como uma urgente oportunidade para se refletir a atuação e o papel dos arquitetos urbanistas, para que esta ganhe um contorno político / Por Adriana Levisky

Parque das Flores e a dinâmica do boicote à cidade

A reflexão deste artigo surge da recente declaração de desistência de doar para a cidade de São Paulo o Parque das Flores. Um Acordo de Cooperação Público Privado firmado entre uma organização civil e a Prefeitura de São Paulo, em uma área pública nos arredores da Av. Paulista, havia estabelecido a realização das obras e gestão deste espaço por 30 anos, sem ônus aos cofres públicos.

No entanto, devido a uma ação civil pública aberta por associações de bairro, o Ministério Público, há um ano e meio, mantém proibido o início das obras nesta área da cidade.

Surgem então alguns questionamentos. Por que a cidade boicota oportunidades de requalificação de suas estruturas? Conservadorismo? Medo? Preconceito? Cegueira aos interesses coletivos? Patologias comportamentais?

A desistência do Acordo de Cooperação, formalizada pela organização civil sem fins lucrativos ‘São Paulo Capital da Diversidade’, vem no sentido de não mais suportar o silêncio, a morosidade ou a inoperância na esperada tomada de decisões, seja de pedido de esclarecimentos ou até de definitiva proibição de realização do contrato assinado.

Em tempos de um cenário catastrófico frente à pandemia da Covid-19, a qual o Brasil vem protagonizando e sendo conduzido de maneira aparentemente calculada e desastrosa por seu governante maior, alguns eixos de discussão merecem atenção.

Esta decisão ocorre ainda no momento da abertura do UIA2021RIO – Congresso Mundial de Arquitetura – que se inicia em março no Brasil sob o tema “Todos os mundos. Um só Mundo”, e se propõe a debater o tema ‘Fragilidades e Desigualdades’.

Soa como uma urgente oportunidade para se refletir a atuação e o papel dos arquitetos urbanistas, para que esta ganhe um contorno político, com “P” maiúsculo, em prol da requalificação da vida urbana através do desenvolvimento de projetos que tragam não somente soluções de desenho urbano, mas de viabilidade econômica, técnica, jurídica e administrativa, garantindo a manutenção e governança de longo prazo.

Esta atuação política nada tem a ver com a ocupação de um lugar simbólico de representatividade de posicionamentos ou antagonismos partidários, mas de uma atuação proativa enquanto ser profissional, embasada em conhecimento técnico e metodologias assertivas, visando, para além da apresentação de um bom desenho, mediar a necessária comunicação com as diversas vozes que compõem a cidade na conquista de uma solução que represente o interesse de uma maioria, podendo, enfim, ser reconhecido como relevante e de interesse público.

É necessário enfatizar que o interesse da maioria não corresponde ao interesse de todos, mas àquele de uma maioria participativa, que se dispôs a se informar, envolver-se, dedicar-se e contribuir em prol de uma causa coletiva, que na maioria das vezes corresponde a um pequeno grupo se comparado à totalidade da população.

O interesse de uma maioria participativa representa muito mais na dinâmica da vida urbana, do que os interesses pontuais encaixados em períodos administrativos em que um ou outro partido político ou coligações partidárias ocupam o poder para atividade da gestão pública.

Neste contexto, é importante se permitir olhar ao redor e perceber o quão importantes no cotidiano podem ser os espaços públicos, cujo acesso é gratuito e garantido a toda diversidade da população, contribuindo para a boa estruturação do sujeito, de seus afetos e prazeres, o respeito e a valorização da pessoa enquanto cidadão, o direito à construção de um sentimento de identidade e de orgulho pelo seu lugar de moradia.

São nestes espaços que se pode oferecer, sem ônus, lazer, entretenimento, socialização, ócio, diversão, descanso, descontração, cultura e experiências absurdamente poderosas na construção de um senso de cidadania e de sociedade.

Cidades mais amigáveis certamente são mais cuidadas pelo poder público e pela sociedade que reconhece neste espaço algo de valoroso e de importante para as suas vidas.

Cidades que não oferecem espaços públicos de qualidade tendem a privilegiar o individual em detrimento ao coletivo, privilegiam condomínios ao invés de calçadas e praças, e perdem a sua capacidade de gestão e zeladoria tanto pública, quanto da sociedade em geral, nas ações de cuidados básicos com o patrimônio público.

É o espaço de todos e para todos. É o que se pode ver refletido em praças e parques malcuidados, calçadas inexistentes, estações de metrô ou habitações de interesse social que tiveram suas instalações ameaçadas ou proibidas em virtude de interesses de poucos moradores das imediações.

O caso do Parque das Flores, assim como tantos exemplos de espaços públicos que tiveram a oportunidade de contar com uma gestão compartilhada entre público e privado, perdeu sua oportunidade de existir.

Daqueles que, profissionalmente, tivemos a oportunidade de atuar pelo nosso escritório Levisky Arquitetos, muitos com desdobramentos similares. Foi o caso da Praça Victor Civita; da reurbanização do bairro do Jardim Colombo; da concessão do Ginásio do Ibirapuera; do Jockey Club de São Paulo, entre tantos outros.

Dentre as particularidades destes projetos, fizeram-se fortemente presentes a inabilidade, o preconceito ou a impossibilidade de fazer acontecer, ou de se manterem vivas, obras oriundas de modelagens onde as relações e os pactos público-privados não foram capazes de se estruturar de forma sinérgica, continuada e longeva em prol do interesse público.

Dada uma extensa lista de projetos não realizados, esta foi a vez do Parque das Flores, que perdeu a oportunidade de existir e ofertar um espaço de qualidade com atividades culturais ao ar livre, educação ambiental, experiências gastronômicas saudáveis, utilização de tecnologias inovadoras na captação e reservação de águas em leitos carroçáveis com pavimentos drenantes, priorização da mobilidade ativa, sobretudo do pedestre em detrimento ao automóvel, desenho universal inclusivo aplicado a novas soluções de mobiliário urbano, iluminação pública, comunicação visual e paisagismo e geração de renda e capacitação profissional na área da produção de alimentos orgânicos no coração da cidade.

Um projeto em que a sua aprovação técnica final passou pela avaliação e aceitação de três prefeitos distintos, de partidos políticos diferentes, e que foi licenciado junto aos órgãos públicos através de 23 diferentes processos administrativos públicos que foram deferidos.

O Parque das Flores foi objeto de intensa comunicação com a vizinhança, passou por cinco audiências públicas, teve contrato assinado após edital de chamamento público, de acordo de cooperação entre a Prefeitura de São Paulo e a organização social sem fins lucrativos – São Paulo Capital da Diversidade – com o compromisso de doar mais de 130 milhões de reais para execução das obras e manutenção e gestão do espaço de 10.000m2, de livre acesso gratuito à população pelo intervalo de 30 anos.

Curiosamente, para não se dizer como desabafo, lamentavelmente esse contrato acaba de ter seu cancelamento formalizado pela associação proponente doadora, após um ano e meio de silêncio gerado a partir da ação civil pública aberta por duas associações de bairro e acolhida pelo Ministério Público que, por motivos desconhecidos, mantém o andamento do processo dentro de, no mínimo, incompreensível inércia.

O histórico relatado acima ilustra então o segundo eixo de discussão: o de não reconhecimento dos resultados conquistados através de processos participativos frente à cultura do individualismo ou do interesse dos pequenos grupos que regem o modus operandi de administrar, tomar decisões, realizar e/ou inviabilizar realizações no país e traz pontos importantes:

• Por que os projetos urbanos, dentre outros projetos de interesse público, aprovados a partir de comprovado rito público participativo e em acordo com os regramentos legais pertinentes são simplesmente anulados em virtude do interesse de poucos?

• Por que a sociedade frente a estes processos não se faz efetivamente presente e proativa na reivindicação dos seus direitos e desejos?

• Por que a dinâmica de abertura de ações civis junto ao ministério público legitima-se através da propositura de reivindicações anônimas ou quase anônimas, acobertadas por representatividades institucionais?

• Por que o poder público, frente ao reconhecimento prévio de ações de relevante interesse público, historicamente pouco se expõe em prol da realização de ações que sabidamente serão positivas para o usufruto da população em geral?

Dado o momento de urgência e oportunidade, o que me motiva a compartilhar esta reflexão para além do campo de atuação “Política” do arquiteto urbanista que urge, foi a reflexão sobre o quanto estamos inaptos e imaturos enquanto sociedade para atuarmos de forma efetivamente democrática em nossas decisões e fundamentalmente no respeito e na legitimação dos processos participativos traduzidos na decisão da maioria, sabendo reconhecer o momento de enxergar o outro enquanto um igual e tolerar as divergências e aceitar as eventuais derrotas individuais.

Para além do desabafo e num exercício particular contra o pessimismo e o derrotismo, vem esta voz que, com uma esperança estrutural e vital, os convida à reflexão no intuito de sairmos de nossa longeva adolescência e caminharmos para uma democracia madura, honesta e construtiva.

Sem este crescimento, frente a tantas tragédias, e na crueza das fragilidades e desigualdades que vimos enfrentando, será muito difícil sobreviver e virar esta página da História.

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