Relato da primavera em Santiago o outubro de 2019 / Por Paulo Roberto Rodrigues Soares
Prólogo – No domingo 6 de outubro, após visitar o impactante “Museu da Memória e dos Direitos Humanos” de Santiago do Chile, pude compreender um pouco mais da importância histórica da luta política e o respeito ao passado e aos cidadãos e cidadãs chilenos e chilenas que lutaram, resistiram e sofreram toda a sorte de abusos do Estado ditatorial de 1973 a 1989. Isso me chamou atenção para que no dia 9 de outubro, no Colóquio do Doutorado de Geografia da PUC-Chile eu encerrasse a minha fala “Tendências da Geografia brasileira: dilemas e desafios” alertando para os perigos e ameaças que estávamos vivendo na universidade brasileira frente à onda de perseguições, assédio e restrições oficiais e extraoficiais contra os acadêmicos, especialmente os das ciências humanas e sociais.
Mal sabia que em poucos dias Santiago e todo o Chile passariam por momentos de intensa mobilização e lutas sociais, manifestadas nas ruas da capital e das principais cidades do país, a ponto do governo chileno decretar – pela primeira vez na democracia (pós-1989) – “estado de emergência” e toque de recolher a partir das 20:00 horas nas maiores urbes do país. Porém…
“Ocurrió cuando nadie lo esperaba. En un mundo presa de la crisis económica, el cinismo político, la vaciedad cultural y la desesperanza, simplemente ocurrió” (Castells, 2012)[2].
Não necessariamente eu deveria estar espantado, uma vez que neste segundo semestre de 2019 acontecimentos em série nos países sul-americanos tem demonstrado que a situação não é nada estável no continente. As explosões populares no Equador, o autogolpe no Peru, as eleições cruciais na Bolívia, no Uruguai e na Argentina, a sempre conturbada Venezuela e mesmo as polêmicas medidas e políticas anunciadas pelo atual governo brasileiro, demonstram que a América do Sul está em ebulição.
Está em jogo o instável equilíbrio político que tem marcado a região nas últimas décadas. Frentes (ou governos) mais ou menos nacionalistas e de centro-esquerda versus frentes e governos ultraliberais e de inclinação autoritária. E isso não é pouco para um continente extenso, populoso e riquíssimo em recursos naturais, sobretudo energéticos, daí sua funcionalidade ao capital internacional e aos interesses das grandes corporações por estas riquezas e suas associações com as elites financeiras e rentistas locais.
Falar sobre o Chile hoje significa replicar, contestar ou ratificar uma série de visões, discursos e narrativas que se reproduzem sobre este país. De um lado, a de modelo econômico “liberal”, de consenso social e de economia e política estáveis, com crescimento econômico e “alternância no poder” sem rupturas institucionais. De outro, a de um modelo econômico “neoliberal”, imposto no período ditatorial e não revogado com o retorno da democracia, de serviços privados (especialmente saúde, educação e previdência), modelo que tem gerado exclusões e desigualdades.
Estando no país por um período curto, com um propósito específico, fico um pouco temeroso de avaliar tudo o que está acontecendo, uma vez que por mais que esteja inserido no país e na universidade, não estou em meu “lugar de fala”. Por isso a referência ao Museu da Memória: com tudo que sabemos pelos livros, filmes e relatos, sempre é difícil colocar-se no lugar de quem viveu aqueles anos e teve amigos e entes queridos desaparecidos e perseguidos. Foi uma tentativa de equilibrar, seguindo a lição de Milton Santos, “razão e emoção”[3].
O Chile hoje
Passadas três décadas do retorno da democracia e de manutenção do modelo neoliberal de economia, a sociedade chilena encontra-se no divã. O país está sentindo, como diria David Harvey (2005), “a diferença que faz uma geração”[4] . Aparentemente o Chile é um país composto por uma imensa “Classe C” (nos moldes do lulismo), consumidora e adaptada às regras do jogo. Aproximando as lentes, as fissuras do modelo se fazem cada vez mais visíveis e presentes no cotidiano da população e neste ano de 2019 uma severa crise climática (seca) tem agravado ainda mais os problemas, com a elevação dos preços de alimentos, energia e água. No momento a coalizão de direita está poder. Segue implantando sua política e apesar do crescimento econômico este também se faz reproduzindo desigualdades e aumentando o custo de vida, o que afeta os mais pobres, especialmente os aposentados.
Dos trinta anos de democracia, a centro-esquerda governou vinte e quatro, sendo os primeiros vinte em continuidade. Esta hegemonia não foi suficiente para mudar o modelo econômico e social, bem como alterar minimamente a base econômica extrativista e exportadora, a qual financia as importações de bens de consumo para a população.
Na América Latina e, por inclusão, no próprio Chile, o ciclo de valorização das commodities da primeira década do século XX permitiu uma acumulação de divisas um pouco maior e certa repartição do excedente, mas este também foi capturado pelos grandes grupos rentistas e que sempre viveram à custa do Estado, seja por suas grandes obras, pela concessão de serviços públicos ou como credores da dívida pública.
Contudo, o momento atual é de retração do crescimento da economia mundial e de baixa dos preços das matérias primas no mercado internacional, o que afeta a economia de base primária dos países da região, diminuindo os recursos disponíveis para as políticas sociais. Isto mantendo o padrão de tributação desigual entre ricos e pobres que tão bem caracteriza nossos países. E o momento da economia mundial é de revolução tecnológica, de expansão da “economia do conhecimento”, de valorização da inovação, por um lado e de flexibilização, precarização e “uberização” das relações de trabalho por outro, o que tem aumentado as desigualdades sociais.
O Chile e o modelo neoliberal
Imagem da mídia: o modelo funciona, com crescimento econômico, baixo desemprego, transições políticas estáveis, alternância no poder, livre comércio e participação do país na OCDE. Realidade: crise e esgotamento do modelo, mal-estar social e muitos questionamentos.
Santiago é hoje uma “metrópole global”, uma região metropolitana de sete milhões de habitantes, concentrando mais de um terço da população do país, que ainda tem duas grandes concentrações urbanas – Valparaíso-Viña del Mar e Concepción – que juntamente com mais de uma dezena de cidades médias somam dois terços da população, que passa, assim, da condição “de país urbano” para a de “país metropolitano”, como apontaram R. Hidalgo, C. de Mattos e F. Arenas (2009)[5].
Para quem conhece a cidade desde 2003, é visível o aumento da miséria, dos moradores de rua e a presença da migração, especialmente venezuelana e haitiana, somada a já tradicional peruana, o que abre espaço para o discurso xenófobo da extrema-direita que tende a relacionar migração e criminalidade. O desemprego é camuflado e a precarização do trabalho é visível nas centenas de “deliverys” de bicicletas e motocicletas que cruzam as ruas de Santiago.
O transporte, juntamente com a habitação, é um componente importante no custo de vida das famílias, especialmente das mais pobres. O aumento do preço do bilhete do metrô na Grande Santiago tem, assim, uma repercussão nacional.
Mas este “estopim” não foi a única mobilização social no Chile em 2019. Este ano tem sido de questionamentos do sistema de aposentadorias e pensões, a campanha “No más AFP” (Associações de Fundos de Pensão), uma vez que a crise das pensões está na ordem do dia agora que a geração de trabalhadores e trabalhadoras que iniciaram o sistema durante a ditadura estão se aposentando e recebendo valores aviltantes, muito aquém do esperado e do prometido.
Também foi o ano de discussão do projeto de lei da deputada Camila Vallejo, a então estudante de Geografia e líder da rebelião estudantil de 2011, que institui a jornada de 40 horas semanais de trabalho no país. Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, 200 mil pessoas se manifestaram em Santiago. E recentemente, no dia 27 de setembro, 100 mil pessoas participaram da passeata contra a mudança climática.
A isenção de impostos para a construção de apartamentos de aluguel, a solução liberal para o problema habitacional, em vez de reduzir os preços tem fomentado a construção, a financeirização e a especulação imobiliária, elevando o custo da moradia e provocando mudanças radicais do uso do solo (gentrificação?) especialmente nas comunas centrais de Santiago.
Questiona-se a estrutura econômica e a riqueza concentrada em grandes grupos econômicos e suas respectivas “famílias”, que dominam setores financeiro, da construção, da mineração, da distribuição (grandes lojas de departamento, supermercados), de papel e celulose, além de participarem como acionistas das grandes empresas de serviços privatizados ou concedidos. Estes mesmos grupos através de artimanhas fiscais evadem grande quantidade de impostos contribuindo relativamente muito menos que médias e pequenas empresas para o financiamento do Estado.
A educação paga, especialmente a superior, é outro fator de agravamento da situação econômica das famílias, que tem que arcar com custos elevados para obter um título superior. A gratuidade, instituída em 2016 não é universal e ainda está aquém dos seus objetivos. Jovens encerram o ciclo universitário já endividados.
A modo de exemplo, uma graduação da área de ciências humanas e sociais pode custar até o equivalente a 20 mil reais por ano, sendo que cursos como arquitetura, engenharias e medicina são ainda mais caros. Isso em um país com 1 milhão e 200 mil universitários, muitos dos quais (para não dizer a maioria), sem perspectiva de obter um emprego condizente com sua formação. E o sistema os chama a serem empreendedores e inovadores!
O salário mínimo de 301 mil pesos (458 dólares na sua instituição em março/2019 e 415 dólares atualmente), foi aumentado para 350 mil após os protestos, entretanto é insuficiente para sustentar uma família com dignidade. Ainda mais que grande parte está endividada pelo consumo e pela moradia. E ainda temos aposentados recebendo por volta de 200 mil pesos de pensão do sistema de “capitalização” (se é possível chamar isso de capitalização) e que arcam com os altos custos da saúde e dos medicamentos.
Tudo isso leva a um forte mal-estar da sociedade, do cidadão médio, trabalhador precarizado, que não vê seu esforço recompensado pelo sistema que diz valorizar a “meritocracia” e que ao mesmo tempo é pressionado a participar do grande banquete da sociedade de consumo. Santiago é uma metrópole com muitos e imensos “shopping malls” – construídos pelos grandes grupos econômicos mencionados.
O mesmo cidadão que vê o Estado patrocinador de políticas de austeridade e refém dos grandes grupos econômicos, que não perdem e são os mesmos ao longo destes 30 anos de democracia. O sistema democrático, apesar da sua “estabilidade” é incapaz de mudar as regras do jogo, alterar os pesos da balança, enquanto a situação social se deteriora e mais pessoas e famílias têm seu padrão de vida rebaixado.
18 de outubro: as ruas de fogo
As tarifas do metrô foram reajustadas no domingo, 6 de outubro. Os meios de comunicação repercutiram o aumento já no dia 7, especialmente nos horários de pico (“hora punta”). O modelo neoliberal chileno tem destas coisas: o metrô, uma empresa pública, opera pela lógica pura e dura da economia de mercado, nos horários de rush, de maior demanda, as tarifas são mais caras.
O sistema de bilhetagem por créditos no cartão facilita a cobrança. Com isso os trabalhadores e trabalhadoras mais pobres, que normalmente residem na periferia mais distante, tem duas alternativas: levantar-se ainda mais cedo, em uma metrópole com duro inverno, ou adiar a volta pra casa, depois de um longo e exaustivo dia de trabalho. Este sistema diferenciado é mais um fator de grande insatisfação dos usuários.
As “evasões” (o “pula-catraca”) iniciaram no mesmo dia e aumentaram de intensidade ao longo da semana e na semana seguinte, como na impressionante manifestação realizada pelos estudantes da PUC-Chile no dia 17 de outubro na estação San Joaquín, que dá acesso ao campus.
Na sexta-feira, dia 18, o movimento se massificou como um “estalido social”, uma verdadeira insurreição, pelas principais estações do metrô, do centro e da periferia. À tarde do mesmo dia, ocorreu uma das mais marcantes da história de Santiago, com a explosão de violência pelas ruas, evasões em massa, “ocupação” pacífica das estações do metrô (imagens abaixo), assim como depredação e incêndio de composições e de estações.
Ao nível “de la calle” barricadas, fogueiras e ataques à estabelecimentos bancários, farmácias (o controle de preço dos remédios é uma das reivindicações), restaurantes fastfood, saques em supermercados, entre outras ações. Os saques também se alastraram pelos bairros da periferia urbana.
O que se seguiu foi a forte repressão policial e militar e o decreto de estado de emergência e do toque de recolher, reacendendo a memória da ditadura e gerando duras críticas dos movimentos sociais e partidos políticos de oposição. A revogação do estado de emergência imediatamente foi incluída na pauta de reivindicações.
O balanço destas jornadas, realizado pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) conta com mais de 3000 prisões (muitas ilegais, desrespeitando direitos fundamentais), 19 mortos, 43 passeatas multitudinárias, com a participação de mais de 300.000 pessoas. O transporte público, especialmente metrô, paralisado por mais de uma semana. Comércio fechado (especialmente pequenas e médias empresas). Escolas e universidades sem aulas.
No auge da crise o presidente Sebastian Piñera, herdeiro da direita apoiadora da ditadura, pronunciou uma frase infeliz: “Estamos em guerra!”. A resposta da população foi imediata, o movimento recebeu maior apoio popular, panelaços são ouvidos todas as noites e um novo slogan foi incorporado às manifestações: “No estamos en guerra, estamos unidos”.
Os movimentos são típicos e característicos das “redes de esperança e indignação”, os novos movimentos sociais do século XXI: horizontais, heterogêneos, complexos, diversos, com variedade de composição, repertórios, formas de participação e pautas de reivindicação; compostos por pessoas organizadas, voluntários, famílias, membros de sindicatos, jovens, movimento estudantil, associações de bairro e organizações sociais. As convocações se dão via redes sociais através de diversas plataformas. Nas manifestações não existem palanques, nem pronunciamentos de partidos políticos. Neste sentido, encontram-se semelhanças com as manifestações de 2013 no Brasil, na sua origem e na sua posterior difusão territorial pelo país. Agregam-se aos movimentos, manifestações de caminhoneiros e motoristas nos pedágios.
Mas as semelhanças param por aí. Enquanto no Brasil, as manifestações de 2013 foram “capturadas” pelos movimentos de direita e extrema direita e algumas reivindicavam, inclusive, intervenção militar, aqui a intervenção militar reforçou ainda mais as manifestações, uma vez que a presença do aparato repressor extremamente eficiente causa mais revolta na população.
Acuado, o presidente da república anunciou uma série de medidas: revogação do aumento das tarifas do metrô, revogação do aumento das tarifas de energia e água, aumento do salário mínimo, aumento emergencial das pensões mais baixas. Também anunciou a redução dos salários de deputados e senadores e a intenção de diminuir o número de políticos. As medidas não foram suficientes, como demonstraram os fatos da semana seguinte.
25 de outubro: la más grande de Chile!
Ignorando o estado de emergência, no dia 23 de outubro a população foi novamente às ruas em uma grande manifestação: 300 mil pessoas na manifestação convocada pelos sindicatos e organizações sociais, inclusive as torcidas organizadas dos principais clubes de futebol: Colo-Colo, Universidad e Universidad Católica. Já neste mesmo dia, iniciou-se a convocação para a sexta-feira (dia 25) com uma chamada ambiciosa: realizar “a maior manifestação da história do Chile”. E sim foi!
Mais de um milhão de pessoas tomaram as ruas de Santiago no dia 25 de outubro de 2019. Desde o final da manhã as pessoas se movimentavam pelo centro da cidade com suas bandeiras e cartazes. No início da tarde iniciaram as “marchas” rumo a Plaza Itália, tomando as principais avenidas da capital, a Alameda especialmente. Ao longo da tarde toda a cidade parecia convergir para o ponto nevrálgico da manifestação. Movimentos, sindicatos, organizações sociais, associações estudantis, associações de bairro, grupos culturais, populares, aposentados, classe média, famílias, grupos indígenas, feministas, movimento LGBTQ, ciclistas, enfim, um amplo, diverso e multifacetado espectro social representando todo o país. Ao cair da noite a manifestação encerrou-se pacificamente, com a população retornando aos bairros, reunindo-se em praças em uma grande quantidade de celebrações culturais e festas, apesar do toque de recolher ainda vigente. Foram registrados poucos incidentes violentos após esta manifestação. De norte a sul, nas principais cidades do país, também ocorreram grandes manifestações.
O pós-25 de outubro abre uma série de questionamentos reflexões. Primeiramente temos semelhanças com movimentos horizontais e autônomos como os “Indignados” de Madrid e Barcelona. Uma série de “cabildos ciudadanos” (assembleias comunitárias) ocorreu nas praças e associações de bairro, discutindo problemas locais (vida urbana), nacionais (modelo econômico e social) e globais (mudanças climáticas). Nas rodas de discussão estão sendo construídas propostas de convivência, de bem-estar urbano, de reforma do pacto social do país e cresce o movimento por uma assembleia nacional constituinte que encerre de vez o ciclo da transição pós-ditadura e instaure uma nova ordem econômica e social com o fim do modelo neoliberal.
O establishment político reagiu. Por parte do governo, o presidente da república solicitou a renúncia ao cargo de todos ministros, levantou os toques de recolher e revogou o estado de emergência. A oposição iniciou a coleta de assinaturas para um processo de “acusação constitucional” (impeachment) contra o presidente da república por violação dos direitos humanos ao longo das manifestações. Acuado, Piñera ataca com a tática de Lampedusa do “é preciso mudar, para que tudo permaneça como está”, trocando oito ministros. Entretanto, no momento, seu status político está mais para o “miniconto” de Augusto Moterosso: “quando acordou, o dinossauro ainda estava ali”…
Ainda sem concluir…
O país está passando por um grande processo de análise e terapia coletiva. Nos meios de comunicação, programas de debate dos mais variados assuntos econômicos, políticos, sociais, psicossociais, culturais, educacionais… O modelo chileno está sendo “passado a limpo”.
A “revolução urbana” da primavera de Santiago ainda vai render muitos debates, análises e artigos. O que podemos avaliar aqui é muito preliminar e a situação pode mudar antes mesmo de terminarmos estas linhas.
Em uma primeira e provisória avaliação podemos afirmar que no outubro de 2019 está se realizando uma experiência nova de relação da população com o seu espaço urbano, sua cidade. A retomada dos espaços públicos, das ruas e praças, o reencontro das pessoas com seu espaço, são evidentes.
Experiências de autogestão e participação cidadã estão se realizando por toda a cidade, nas comunas centrais e periféricas. Na Plaza Ñuñoa, tradicional ponto de reunião da juventude universitária, ocorre um grande número de manifestações culturais, atividades lúdicas com crianças, rodas de discussão e assembleias populares.
Plaza Italia e Plaza Ñuñoa configuram territorialidades distintas e interconectadas de um mesmo processo “revolucionário”. Enquanto a Plaza Italia se configura como o palco político das manifestações multitudinárias, da afronta aos poderes constituídos e de demonstração de força da população, a Plaza Ñuñoa desenha-se como o espaço de representação e celebração de um novo cotidiano que se quer construir, com uma temporalidade mais adequada à construção de propostas. Simultaneamente, estes “territórios” inserem-se em uma rede de relações que se espraia por outras escalas, pela metrópole, pelo país e pelo planeta.
Algumas “lições” preliminares
Primeiramente, comparando com as manifestações de 2013 no Brasil, mesmo que o estopim seja muito semelhante (a tarifa do transporte público, as reivindicações urbanas), o desenvolvimento posterior foi muito diferente, pois aqui a direita não aparelhou as mobilizações, nem sequer teve chance ou condições de se apresentar no interior das manifestações.
Segundo, que a academia, os movimentos sociais mais institucionalizados, os partidos políticos (especialmente de esquerda) tem que entender o que está acontecendo, para estar à altura dos acontecimentos e dos desafios que esta nova (ou novas) sensibilidade política requer. É preciso dar-se conta da horizontalidade, do rechaço às hierarquias e aos dirigismos. É preciso também entender a posição social de uma população cada vez mais educada nas universidades e com inúmeros canais alternativos de informação. Entender seus dilemas do presente e anseios de futuro em um mundo do trabalho completamente novo, pleno de ameaças e precariedades, e de um planeta ameaçado por uma globalização que destrói economias locais e coloniza territórios tradicionais.
Terceiro, esta experiência é eminentemente e profundamente urbana e metropolitana. As pessoas querem reinventar suas relações com seu próprio espaço vivido. Querem um novo espaço urbano, uma nova cidade na qual possam tocar suas vidas solidariamente. E se relacionam com experiências nos diferentes continentes do planeta. É a revolução da “nova era urbana”.
Até quando esta revolução estará em curso ainda estamos por saber, certo é que a sociedade chilena nunca mais será a mesma e que mudanças deverão ocorrer. As eleições municipais e regionais de 2020 demonstrarão se estes acontecimentos conseguiram construir um novo poder popular.
Este foi o relato de uma “revolução urbana”, daqueles dias que na história valem por anos. Uma experiência de resistência, de liberação, de autogestão, de encontro, de construção de espaços de esperança.
Encerro com os versos da música “El baile de los que sobran”, de 1986, da banda de rock chilena Los Prisioneros, que se tornou um dos hinos das manifestações de outubro de 2019:
“Únanse al baile, de los que sobran.
Nadie nos va a echar de más.
Nadie nos quiso ayudar de verdad”.
Santiago de Chile, outubro de 2019.
Paulo Roberto Rodrigues Soares é professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre. Atualmente Professor Visitante em estágio pós-doutoral no Instituto de Geografia da PUC-Chile.
[2] Castells, M. (2012) Redes de Indignación y Esperanza. Los movimientos sociales en la era de Internet. Madrid: Alianza Editorial.
[3] Santos, M. (1996) A Natureza do Espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec.
[4] Harvey, D. (2005) La diferencia que supone una generación. In Espacios de Esperanza. Madrid: Akal.
[5] Hidalgo, R.; Mattos, C. de; Arenas, F (2009) Chile: del país urbano al país metropolitano. Santiago de Chile: PUC-Chile.
Fonte: Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre
https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/