Projeto do arquiteto Adriano Mascarenhas para terreiro de candomblé é destaque em evento na Harvard
Ao se comprometer a desenvolver um projeto para o terreiro de candomblé Tigongo Muende, o arquiteto baiano Adriano Mascarenhas não imaginava que chamaria a atenção de uma das mais prestigiadas instituições de ensino do mundo, a Universidade Harvard.
O trabalho produzido pelo estúdio Sotero Arquitetos, de Adriano, com sede em Salvador/BA, integrou a programação do evento Sacred Groves & Secret Parks: Orisha Landscapes in Brazil and West Africa, na Harvard Graduate School, em Cambridge, Massachusetts.
O interesse da Harvard pelo projeto do Terreiro Tingongo Muende se coaduna com o objetivo do evento ao reunir “insights sobre a materialidade e espacialidade das práticas diaspóricas afro-religiosas, descentralizando os cânones ocidentais do conhecimento e levando a novas possibilidades de design para cidades brasileiras e da África Ocidental”, de acordo com o site oficial.
Em sua apresentação, Adriano Mascarenhas destacou informações sobre todas as etapas de desenvolvimento do projeto, incluindo os processos de pesquisa sobre a história dos Ilês Orixá (terreiros de candomblé) na Bahia, sobretudo acerca da experiência e dos desafios que envolveram o trabalho. “Embora não seja profundo conhecedor da tradição do candomblé, como cidadão baiano sou consciente da indissociável relação etnográfica das práticas diaspóricas afro-religiosas, do culto ancestral dos orixás no processo civilizatório brasileiro, nos traços e no cotidiano de fé da nossa sociedade, presente no ar que se respira em Salvador. Assim, mergulhamos numa investigação intensa sobre o tema para a concepção de um terreiro de candomblé a partir de um marco zero”, explica.
Para o arquiteto, o convite do Gareth Doherty, professor e coordenador do curso de Arquitetura em Harvard, proporcionou a oportunidade de uma reflexão mais aprofundada sobre a resultante do processo de concepção de um projeto singular como este do terreiro Tigongo Muende. “Normalmente, a rotina nos engole e não conseguimos apreciar os processos que nos levaram a um resultado gratificante de trabalho. Dada a especificidade deste projeto, desde o início nos envolvemos de forma apaixonada em todas as etapas e, por essa razão, recebemos com muita alegria o convite do prof. Gareth. Acredito que nos espaços desse lugar tão distinto, a ordem das coisas parecem obedecer a outros desígnios”, considera.
Sobre o projeto – Constitui o primeiro projeto arquitetônico para terreiros registrado oficialmente na base de levantamentos autorais do Conselho Profissional de Arquitetura e Urbanismo Brasileiro. Entendendo o caráter e peculiaridade do patrimônio material que se vincula estreitamente a um patrimônio imaterial, cuja existência repousa na dinâmica de uma tradição, de um uso consagrado, é com os pés descalços – num gesto que possa simbolicamente ser cara ao culto, a memória afro-diaspórica, de cuidado, mas também do vínculo com o território, da compreensão da condição de cidade no enfrentamento do projeto – busca-se respostas através de um desenho rigoroso contemporâneo, do detalhe, pautado tanto nas tipologias da edificações de tradição popular como na “erudição” da arquitetura moderna brasileira. Persegue-se a expressão de uma unidade na leitura da paisagem proposta de devoção aos orixás, mediando o construído e o natural.
Motivações:
• Estado precário dos edifícios (autoconstrução com baixa qualidade construtiva);
• Necessidade de qualificar os espaços de culto;
• Necessidade de geração de alternativas de sustentabilidade econômica do terreiro e comunidade;
• Dificuldade de manutenção de um grande terreno com topografia acidentada (muitos idosos utilizam o terreiro, pouca receita pra manter) – controle dos limites.
Etapas do processo do projeto:
Espaço Religioso – Espaço Construído
• Barracão (público) – espaço das festividades públicas, organizado em 2 zonas básicas, o restrito, onde se concentram os hierarcas, os filhos de santo da casa em transe, os tronos das divindades, espaço de dança e manifestação das entidades; e o público, onde à direita, são dispostos os homens e, à esquerda, está a ala feminina:
• Cozinha Ritual (restrito) – para preparo das comidas rituais e para comunidade.
• Quartos de Santos – Ilê Orixá (restrito) – salas onde se encontram os objetos de devoção, adereços de cada entidade, orixá;
• Cômodos para membros graduados (camarinhas – ronco, sabagi) (restrito) – as clausuras onde ficam recolhidos os iniciados.
Mato (Espaço Verde – memória da África) – caracterizado por árvores, arbustos e toda sorte de ervas, constituindo um reservatório natural, de onde são recolhidos os ingredientes vegetais indispensáveis a toda pratica litúrgica.
• Árvores sagradas.
• Assentamentos de Divindades (pequenos santuários dos orixás) – Amoringanga e Tempo.
• Flora Ritual.
Espaço cotidiano
• Casas de membros do culto (casa do pai de santo, casas membros da comunidade, casa do caseiro).
• Acomodações temporárias.
Das lições apreendidas, Adriano destaca a evidência do quão potencialmente os Terreiros do século XXI constituem espaços do futuro. “Como estratégia de resiliência urbana contemporânea, na tradição do culto aos orixás, cumprem o papel ecológico de conservação das áreas verdes residuais e sobretudo de sustentabilidade social na cotidianidade de suas comunidades e cultos”, diz.
Para o arquiteto, “cabe na compreensão do que sabemos para o que podemos conhecer, valorizar essas frentes por meio do design, oferecendo a condição para que esses espaços sagrados atravessem os séculos respondendo aos desafios do mundo, fortalecendo sua originalidade.”
Ficha:
Ano: 2017
Localização: Rua Juscelino Kubitscheck, Cajazeiras 11, Salvador/Bahia
Coord. Geográfica: 12°52’59.4″S 38°24’35.6″W
Status: Construído
Área do terreno: 6.042,32
Área Construída: 317,95 m²
Autor: Adriano Mascarenhas
Colaboradores: Helder da Rocha e Rodrigo Sena
Imagens: Acervo Sotero Arquitetura
Terreiro Tingongo Muende – Fundado há 35 anos por Mãe Gil, a babalorixá da casa falecida há 7 anos, o Terreiro Tingongo Muende está localizado no bairro de Cajazeiras XI, na periferia da Região Metropolitana de Salvador, desde 1985. O projeto incluiu a transferência do terreiro para outro espaço na mesma região. Cajazeiras XI possui uma população de 16.899. Atualmente, Alfredo, Ogan, e sobrinho de Mãe Gil, preside o Ilê junto com a sua esposa e com auxílio de outra mãe de Santo.
Tem como orixá regente Obaluaê, referenciado como o orixá da peste, da doença e da cura, o Tigongo se autodenomina de Nação Angola – Keto – Jeje, evidenciando a ampla variedade e combinação ao longo dos séculos das nações originalmente distintas em termos linguísticos e rituais.
Não se trata de um terreiro tombado, ou seja, não está sob a salvaguarda de qualquer órgão do patrimônio e, também, não está no circuito dos terreiros mais conhecidos que de algum modo se beneficiam da visibilidade de alguns dos seus filhos, frequentadores, artistas, políticos, que indiretamente propiciam um suporte financeiro à manutenção do terreiro.
Dados de pesquisa – Segundo dados do Mapeamento dos terreiros realizado pela Secretaria Municipal da Reparação e da Habitação, em parceria com o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao/UFBA), em 2006, para a execução do Projeto de Regularização Fundiária dos Terreiros de Candomblé, do total de 1.162 terreiros cadastrados em Salvador, 68,6% têm menos de 31 anos de existência.
De acordo com o Conselho Brasileiro de Arquitetura e Urbanismo (CAU: 2012 – 2019), existem cerca 1.400 terreiros existentes em Salvador, inclusive aqueles poucos tombados, construídos sem vislumbrar a elaboração e reflexão das possíveis contribuições da atribuição profissional Arquitetura e Urbanismo – seja de teor intelectual, seja técnico – funcional, num diálogo mediador entre deuses e homens. Uma ilustração da realidade brasileira que reside em outras questões.
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