Concessão com doação de direitos de construir ao privado: “tem mais cara de doação do que negócio” / Por Paula Freire Santoro, Flavia Taliberti Peretto, Isadora Marchi de Almeida
Nesta semana um novo passo foi dado na direção de permitir que o concessionário do Estádio do Pacaembu possa transferir o potencial construtivo relativo a esse imóvel público. Após inicialmente suspender o processo de concessão do Pacaembu, uma juíza interpretou em Ação Civil que trata do caso que o concessionário poderia receber os direitos de construir e vendê-los a outro privado, desde que utilizasse o recurso na conservação das estruturas tombadas e intervenções de requalificação da Praça Charles Miller. Esta decisão abre um precedente perigoso: a associação dos direitos de construir, que são públicos, à concessão de um equipamento público a um privado.
Há mais de um perigo envolvido na abertura deste precedente. Não se sabe quantos imóveis estão na mesma situação, podendo significar uma evasão de recursos públicos aos privados, sem que haja processos públicos de monitoramento dos recursos gastos para garantir sua efetiva utilização na conservação dos imóveis.
Já falamos aqui sobre o instrumento que viabiliza esta operação, a Transferência do Direito de Construir. É utilizado pelo poder público para autorizar os proprietários de imóveis tombados – marcados como Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPECs) – e de parques – marcados como Zonas Especiais de Proteção Ambiental (ZEPAM) -, a vender para outro terreno o direito de construir de sua propriedade, total ou parcialmente (PDE – Lei Municipal n⁰ 16.050/2014, art. 122 a 133).
Também existem os casos em que os proprietários doam os seus imóveis ao poder público – em atendimento a uma das finalidades de interesse público previstas pelo PDE – e recebem, em contrapartida, o potencial construtivo referente ao imóvel recém-doado. Os metros quadrados que podem ser transferidos equivalem a 1X a área do terreno, já que esta metragem é definida pelo coeficiente de aproveitamento básico – que em São Paulo é igual a 1, com algumas exceções.
A Transferência é uma compensação aos privados por não exercerem a metragem quadrada igual a uma vez a área do terreno que todos os imóveis da cidade têm direito, e portanto, está em tese, associado ao direito de propriedade. Mas da forma como foi regulada, termina transferindo metros quadrados inclusive nos casos nos quais os imóveis já consumiram este estoque, como é o caso do Pacaembu. Assim não estaria mais compensando o proprietário por não utilizar esta metragem no terreno, e sim dando de presente uma espécie de bônus em metros quadrados de construção que são públicos, um bem de uso comum, para um privado vender!
A pergunta que fica é: tem sentido este bônus acontecer no âmbito de uma concessão, cujo objetivo justamente estaria no privado poder, a partir da exploração comercial do bem, preservar o bem e ofertar os serviços públicos que o equipamento oferece e que, de acordo com a justificativa da concessão o poder público não teria recursos neste momento para arcar? Tem sentido o poder público dar recursos para concessões rentáveis, cuja equação deveria se pagar e poderia financiar a conservação do bem?
A ideia do instrumento da TDC parece simples, mas os cálculos têm se mostrado bem complexos, pois há “fatores de incentivo”. Estes variam em função dos objetivos da transferência e também variam em função de alterações feitas no zoneamento de 2016 para que a aplicação do instrumento tomasse um outro rumo.
Um exemplo é o do Parque Augusta. O caso consistiu em uma operação na qual o imóvel foi doado ao poder público e, como contrapartida, os seus antigos proprietários receberam a possibilidade de vender o potencial construtivo referente ao imóvel doado para a Prefeitura. O PDE prevê a possibilidade de se utilizar a TDC para viabilizar a doação de imóveis para atender a quatro finalidades de interesse público, dentre elas a implantação de parques planejados e, para cada uma destas finalidades é aplicado um “fator de incentivo” para o cálculo da área passível de transferência.
O resultado desse cálculo nem sempre resulta em grandes metragens transferíveis (vide o Parque Augusta que tem pouco mais de 3 mil m² para transferir). Porém, ao se fazer o cálculo da transferência de potencial construtivo, no caso de imóveis doados para a implantação de parques públicos, a área que chega no imóvel receptor termina sendo multiplicada por 10. A ideia presente no PDE era estimular o uso do instrumento da Transferência para facilitar a doação de terrenos. Já existem em andamento na Prefeitura outras propostas de doação de terrenos envolvendo as outras finalidades permitidas pelo PDE além da implantação de parques.
Outro exemplo é o do Pacaembu. Como as transferências a partir de grandes terrenos estavam ficando mais interessantes para o mercado imobiliário do que a compra de direitos de construir do poder público, via Outorga Onerosa, o zoneamento aprovado em 2016 (Lei Municipal n⁰ 16.402/2016) fez ajustes.
A partir da nova lei foi determinado que imóveis tombados com mais de 50 mil m2 de área de lote pudessem vender apenas 0,1 vez o coeficiente básico, ou seja, 10% da área de seu terreno, aplicando na fórmula de cálculo definida pelo PDE, novos “fatores de incentivo”.
Esta correção teve como objetivo, por um lado, corrigir distorções e privilégios que imóveis tombados com grandes áreas tinham sobre os menores, em maior quantidade e com pouco estímulo à preservação, e por outro lado, permitir que mais imóveis pudessem também transferir, criando maior concorrência.
A transferência de bens públicos para a gestão privada, através de concessões, ou mesmo a venda ou privatização de imóveis, faz parte de um projeto mais amplo de desestatização, por isso o perigo que este precedente traz. Estas operações têm acontecido no âmbito de projetos de desestatização / privatização em curso em todas as esferas de governo – federal, estadual e municipal.
Os argumentos envolvem “fazer caixa”, “reduzir custos”, mas o que se assiste é a tentativa de uma liquidação considerável do que é público – sejam imóveis, direitos de construir ou recursos em dinheiro – e os recursos obtidos vão para os privados, ou para transformações urbanas de mercado, rentáveis, cujo interesse público por vezes parece duvidoso. Por exemplo, a quem interessa a privatização do Pacaembu?
Há outros imóveis em situação parecida, podendo ampliar o impacto desta decisão. Além do Pacaembu, áreas como o Aeroporto de Congonhas, parte do Hospital das Clínicas, a Estação da Luz, entre outros, são casos de imóveis públicos que são tombados pelos orgãos de patrimônio histórico e que poderão fazer parte de concessões que vão incorporar, em seus planos de negócios, os recursos obtidos com a venda da metragem quadrada que pode ser transferida.
Outros argumentos da Ação giram em torno de que não está garantido que as edificações preservadas sejam mantidas, considerando que o projeto apresentado para a Concessão fere alguns dos objetivos de preservação. No entanto, para viabilizar a utilização da Transferência deverá ser firmado um Termo de Compromisso com o Conselho Municipal de Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP) da Secretaria Municipal da Cultura.
O Termo deve incluir um levantamento de dados sobre o bem tombado, contendo pesquisa histórica e diagnóstico sobre o estado atual de conservação do imóvel e, com base nesse levantamento, deve apresentar um projeto de conservação e restauro, o qual utilizará dos recursos adquiridos através da venda de potencial construtivo.
A decisão da juíza de liberar a concessão do Pacaembu certamente aposta na necessária articulação entre os recursos obtidos e o plano de conservação descrito no Termo de Compromisso, mas os termos geralmente não descrevem valores empenhados, dificultando o monitoramento destes gastos. Além do mais o artigo do Decreto do PIU do Pacaembu que estabelece a possibilidade de utilizar os recursos da venda de potencial em investimentos na preservação do bem falha ao dizer que os recursos “poderão” e não “deverão” ser gastos. Inclusive, não há relação entre o valor obtido com a transferência e os custos da preservação do bem, podendo ser menor ou maior.
No caso do Pacaembu, o proprietário do imóvel poderá transferir pouco mais de 7.500 m2 (10% de sua área total, 75.598,00 m2). Para saber quanto valeria esta metragem, fizemos um cálculo de quanto sairia uma venda equivalente se esta metragem fosse vendida pelo poder público, através do instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir. Chegamos ao valor de R$ 6,1 milhões. Mas frisamos aqui: o poder público nunca vendeu direitos de construir obtidos a partir de seus imóveis públicos!
E o mercado tem ofertado valores menores que este pela compra via Transferência. Inclusive este foi um dos acertos de rumo do instrumento: a procura do mercado pela compra de metragem mais barata via Transferência em vez da Outorga Onerosa poderia criar uma competição entre os instrumentos e impactar em redução da arrecadação de recursos para o Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb), que é fundamental para a redistribuição dos investimentos públicos na cidade como um todo.
Além dos recursos obtidos com a Transferência do Direito de Construir, será possível explorar comercialmente o imóvel público. Está se concedendo o espaço, dando de brinde ao concessionário uns milhões de reais, e ainda permitindo a exploração comercial do bem público, raciocínio que levou Juca Kfouri a perceber que a Concessão do Pacaembu “tem mais cara de doação do que negócio”.
A proposta envolve a demolição do tobogã para dar lugar a um hotel, escritórios ou uma faculdade, em edifício de 8 andares. Será possível cobrar pelo uso do equipamento público. E poderá haver exploração dos “direitos de nome” (em inglês, “naming rights”), nos moldes de outros estádios que agora têm nome de empresas. Até pouco tempo era consenso entre os operadores do direito que não seria possível explorar comercialmente um imóvel público. Mas as figuras híbridas como PPPs e concessões abrem interpretações diversas, que não raramente têm levado à exigências que os serviços públicos sejam mantidos.
No caso do Pacaembu, a “solução” foi incluir no edital da concessão a obrigatoriedade de manter alguns equipamentos esportivos abertos à população por um mínimo de horas semanais. A quantidade ÍNFIMA, por exemplo, de 5 horas semanais obrigatórias para a piscina soa como mera formalidade diante da atual disponibilidade diária entre 9h e 17h.
Paula é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade; Flávia é arquiteta e urbanista, mestranda em Planejamento Urbano e Regional na FAU-USP; Isadora é mestranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade.
Contato:
Labcidade
(11) 3091-1979
http://www.labcidade.fau.usp.br/