Uma aula sobre conexão, integração, articulação e “urdimbrização”
Quando dois grandes mestres se juntam não se pode esperar que não resulte em uma aula. E foi magna – e magnífica – a conversa desta quarta-feira, 24 de março, entre os ilustres arquitetos Jorge Mário Jáuregui e Alejandro Echeverri, com a moderação da editora da revista Projeto, Evelise Grunow.
O argentino Jáuregui deu a largada lançando mão de um termo, um verbo, um conceito, que tem usado bastante para se referir ao trabalho do arquiteto urbanista: urdimbrizar. “Fazer urdimbre (urdidura), conectar, permitir continuidade, fazer cidade, tecido urbano”, definiu em tom filosófico e quase poético.
A tarefa não é simples. Exige saber ler a realidade e criar relação entre o que existe e o novo, o que se propõe – explica Jáuregui. Uma das estratégias, segundo o mestre, é a reconfiguração das centralidades: “partindo das que já existem, potencializá-las e introduzir novas, que ressignificarão completamente os lugares”.
Para exemplificar, Jáuregui apresentou parte de sua farta coleção de projetos de urbanização de favelas, dos mais diferentes portes, entre elas as famosas Rio da Pedras, Rocinha, Vidigal, Manguinhos e Complexo do Alemão, todas no Rio de Janeiro. Sobre essa última, que reúne mais de 80 mil habitantes, ele destaca um dos impactos da instalação do teleférico: “o tráfico de drogas perdeu o seu bunker, que ficava justamente no topo do morro, num lugar antes inacessível e, depois, mais visitado que o Cristo Redentor”.
Os projetos fizeram parte de programas de governo implementados ao longo dos últimos trinta anos. Mais recentemente, o arquiteto desenvolveu um projeto para Domingo Sávio, bairro em Santo Domingo, capital da República Dominicana: a reurbanização de uma área degradada – à margem do rio Ozama – onde cerca de 1,4 mil famílias moravam em condições insalubres, sob risco de inundação e contaminação.
São muitas as experiências, muitas histórias envolvidas em cada projeto. “A arquitetura diz respeito a isso: ajudar a construir histórias”, refletiu Echeverri após a apresentação do colega. Foi, então, a vez do colombiano contar suas intensas histórias, sobre iniciativas que transformaram Medellín, cidade em que nasceu.
Com uma experiência de mais de 30 anos em favelas do Rio de Janeiro, Jáuregui teve a oportunidade de acompanhar diversas iniciativas de urbanização de favelas já realizadas na metrópole fluminense. Para ele, o caminho não é apenas mobilizar a comunidade, mas sim, uma equipe multidisciplinar capaz de levar articulação para fora do local e fazer com que as demandas cheguem ao poder público. No entanto, é consenso que tal receptividade depende muito das circunstâncias políticas.
Neste contexto, citou iniciativas positivas do passado como o projeto Favela-Bairro e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Hoje , diria que estamos em um processo de regressão, onde o que vemos é um poder público completamente surdo em relação a essas demandas”, pontuou Segundo o argentino, as vozes das comunidades são muitas e reverberam entre si através da tecnologia, das redes sociais e da comunicação de massa. Citou como exemplo o Jornal A Voz da Favela, do Complexo do Alemão. “Hoje as favelas se conectam entre si e há instituições próprias da comunidade. Isso já tem uma história”, disse.
O arquiteto e urbanista acredita que não há uma receita pronta para atuar no complexo contexto das favelas pois, na sua opinião, as metodologias se derivam da prática. E, mais uma vez, voltou a defender a presença de uma equipe multidisciplinar capaz de intervir e dar conta de tamanha complexidade das inúmeras comunidades e pessoas que habitam esses espaços. “É fazer e pensar, pensar e fazer, num vai e vem que não se esgota. Essa é a particularidade de tal intervenção’, destacou.
Echeverri mostrou um mapa com a linha amarela que separa (ainda hoje) a Comuna 13 – no passado, uma das maiores e mais violentas favelas do país– do bairro de San Javier. “Essas fronteiras, físicas e também imaginárias, são desafios em diversas cidades latino-americanas. A questão é como diluí-las e, com processos sociais, cívicos, com políticas públicas, fazer uma integração”.
Echeverri discorre sobre pontos centrais em seus projetos: transporte, espaços públicos, educação – “elementos que conectam”, diz. Conta também que estuda o itinerário dos cidadãos e que o desenho urbano pode ser capaz de mudar comportamentos e, assim, desencadear múltiplos impactos. E destaca a importância das alianças entre setor privado, setor público, comunidade e academia: “depois de 15, 20 anos, é possível perceber que os projetos que resistem são os que contaram com maior número de aliados, de atores, aqueles que se fizeram com as comunidades, com múltiplas vozes”.
Um exemplo está no novo Paseo Carabobo, eixo estruturante que conecta o Parque Explora – obra de Echeverri – com o Jardim Botânico, o Parque Norte, o Centro Cultural Moravia e o Parque de los Deseos. “Hoje é palco de eventos, de interação social, do que se deseja para Medellín”, diz o arquiteto.
“É uma convergência que eleva a potencialidade”, na síntese de Jáuregui. Seguindo o raciocínio, o argentino defendeu que o urbanismo deve andar junto com a economia e, indo além, discorreu sobre a “Ágora do Século 21”, que reunirá trabalho, cultura, educação e convivência das diferenças – devidamente “articuladas”. Para Jáuregui, o arquiteto tem o papel de “articulador de diferenças”.
Echeverri apontou, no entanto, os limites e desafios dos profissionais da área: “estamos trabalhando em um momento de transição e é preciso abrir espaço para se construir uma profissão distinta; não vamos construir imagens finais, estáticas, e sim processos, que são dinâmicos”. Ele acredita que a formação do arquiteto deve evoluir cada vez mais para processos colaborativos e flexíveis e que as novas tecnologias favorecem esse movimento. “Mas resta ainda o desafio de gerar o diálogo intergeracional, que conecte o valor dos jovens com o dos profissionais de maior experiência”.
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