Mostra reúne 40 obras do modernista pernambucano em retrospectiva inédita desde a década de 1980 e revela série de litografias denominada “Suíte Pernambucana”
A Simões de Assis Galeria de Arte apresenta, entre os dias 9 de junho e 4 de agosto, “Cícero Dias”. A exposição reúne 40 obras na primeira grande retrospectiva do modernista pernambucano – que viveu entre 1907 e 2003 – em uma galeria desde a década de 1980. Além das aquarelas, é revelada ao público, três décadas após a sua criação, a “Suíte Pernambucana”, série inédita de litografias criadas em 1983, em Paris. A curadoria é de Waldir Simões de Assis.
Definido pelo crítico de arte André Salmon como um “selvagem esplendidamente civilizado”, expressão dedicada ao artista em um poema de Paul Verlaine, Cícero era avesso às escolas e produzia uma arte baseada no instinto
“Toi, mort, mort, mort !
Mais mort du moins tel que tu veux,
En nègre blanc, en sauvage splendidement
Civilisé, civilisant négligemment.”
Paul Verlaine, Dédicaces, LVII – À Arthur Rimbaud – II
Segundo o curador da mostra, Waldir Simões de Assis, o artista “produziu grande parte da sua obra na Europa nas três décadas em que lá viveu sem jamais abdicar os valores mais profundos da nossa cultura. A trajetória de Cícero Dias foi pautada na liberdade, tanto na expressão da sua arte quanto na conduta da sua vida. Alguns episódios da sua história pessoal confundem-se com acontecimentos políticos da maior relevância no século XX, como as relações conflituosas com a ditadura Vargas no Brasil e sua participação na resistência ao nazifascimo na Europa.”
“A exposição agora apresentada na Simões de Assis Galeria de Arte reúne trabalhos excepcionais, recompondo todo o percurso desse artista múltiplo, curioso e atrevido – que jamais teve medo de ousar. O Selvagem esplendidamente civilizado, civilizando negligentemente… por toda a sua longa vida”, declara a curadora de arte Denise Mattar.
Cícero Dias: vida e obra – Ao longo de sua vida, Cícero teve diversas fases criativas, mas foi sempre fiel ao seu próprio estilo. Nascido no Engenho de Jundiá, Pernambuco, mudou-se para o Rio de Janeiro na pré-adolescência para concluir os estudos no Colégio São Bento. Ingressou na Faculdade de Arquitetura em 1925, mas não terminou o curso, pois não gostava de matemática.
A revelação como artista aconteceu após uma exposição de aquarelas em 1928, na Policlínica, no Rio de Janeiro. Na época, a intelectualidade carioca e modernista, formada por nomes como Graça Aranha e Murilo Mendes, prestigiou a mostra marcada por traços surrealistas. O espaço abrigava um congresso internacional de psicanálise e a “loucura” de Cícero foi enfatizada. Sua obra instintiva causava estranhamento até mesmo nos modernistas, que tinham influências europeias.
“O seu trabalho desse período é lírico, agressivo, caótico, sensual, poético e emocionante. Era chamado de primitivo – um equívoco – pois seu trabalho nada tinha de ingênuo. No Recife, conhecera Gilberto Freyre e se interessara por sua proposta de partir do regional para alcançar o internacional. Sua opção era bastante constante e ‘civilizada’, mas a força, quase fúria que o levava a pintar era incontrolável – lá estava o selvagem”, explica a curadora Denise Mattar.
O talento de Cícero era reconhecido, mas, como suas obras não tinham classificações, causavam sentimentos dualistas de admiração e desconforto. “Eu não fazia construção nenhuma, meus desenhos eram muito à vontade. Aquilo espantava os pintores como o Di, Tarsila e Segall. Creio que os meus desenhos perturbavam um pouco aqueles sistemas rígidos que eles traziam da Europa”, declarou o próprio artista.
Sua obra “Eu vi o mundo… e ele começava no Recife” chamou atenção no Salão de 1931, no Rio de Janeiro. Considerada profusa, confusa e dramática, com mescla de memórias e cenas típicas nordestinas e devaneios eróticos, foi atacada pela crítica e, ao mesmo tempo em que consolidou a fama de Dias, fechou caminhos.
Incentivado por Di Cavalcanti, outro pintor instintivo, foi morar em Paris em 1937 e envolveu-se com a vanguarda francesa, ligando-se a nomes como Picasso e Paul Éluard. No ano seguinte, em 1938, fez uma exposição de sucesso na Galerie Jeanne Castel.
A década de 1940 marca a exacerbação do lado selvagem de Cícero, que aos poucos alcança a fase abstrata. Após ser preso junto com outros brasileiros, decidiu ir para os Estados Unidos, mas acabou fazendo uma escala em Portugal e ficando por lá. Esse período marca uma mudança radical nas obras do artista: a transição para o abstracionismo vibrante, com cores e traços próximos a Kandinsky.
Além disso, Dias é autor dos primeiros painéis de arte abstrata da América Latina, realizados em Recife em 1948, na sede da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco. Como sempre, o trabalho foi polêmico, elogiado e criticado, e chegou a causar irritação nos concretistas brasileiros.
Em 1960, em paralelo à sua pesquisa geométrica, desenvolveu uma série chamada “Entropias”, que significa medida de desordem, análoga ao sentido natural das coisas. Ele mergulhou nas possibilidades das tintas e cores, que escorriam e misturavam-se.
Nesse mesmo período, Cícero pendeu para a figuração e trouxe de volta o imaginário lírico e as referências de sua terra natal. Essa fase representa um trabalho mais maduro, com a retomada de mulheres sonhadoras e esvoaçantes dos anos 1920, unidas a traços “fauves” e geometria abstracionista.
Pintor reconhecido desde 1950, passa a ser tema de exposições importantes. Entre 1980 e 1981, criou um painel figurativo com a história de Frei Caneca, em Pernambuco. Em 1991, fez um mural abstrato para o metrô de São Paulo, na estação Brigadeiro e em 1999 desenhou a Rosa dos Ventos da Praça do Marco Zero, em Recife.
Sobre a “Suíte Pernambucana” – Em 1983, Camile Masrour, proprietário da Galerie Belechasse, em Paris, convidou Cícero Dias para produzir uma coleção a partir de 25 imagens de suas aquarelas da década de 1920, realizada no tradicional método litográfico, com o desenho sobre placas de pedra.
“Para a impressão de cada folha em papel Arches, foram necessárias de quinze a vinte passagens de diferentes cores de tinta, buscando a fidelidade à rica paleta do artista. Todas as etapas do trabalho foram supervisionadas por Cícero Dias e, a cada assinatura sua, bon à tirer, aprovando o início da impressão, era uma festa renovada. Após a conclusão do trabalho, as matrizes foram destruídas. A coleção foi batizada de Suíte Pernambucana”, conta Waldir Simões de Assis.
A galeria parisiense, especializada em arte moderna, desenvolveu as litografias para expô-las internacionalmente. Inclusive, essas obras foram apresentadas na França e no Brasil em 1986. Com o fechamento da Galerie Belechasse, em 1987, o projeto para novas exposições foi interrompido.
“Em 2001, durante a pesquisa para a edição de um livro sobre sua obra, Cícero Dias mostrou-me uma coleção dessas gravuras que possuía em seu atelier e contou-me o processo de sua execução. Em raras ocasiões ele dedicou-se à litografia, mas, sempre que o fez, produziu obras notáveis”, relata Waldir.
Após adquirir esse raro conjunto, a Simões de Assis Galeria de Arte revela ao público, num novo tempo e após três décadas da produção, a “Suíte Pernambucana”.
Serviço:
“Cícero Dias”
Local: Galeria Simões de Assis. Rua Sarandi 113 – A, Jardins – SP.
Até 04/08
Horário de funcionamento: segunda a sexta-feira, das 10h às 19h. Sábado das 10h às 15h. Fecha aos domingos e feriados.
(11) 3062-8980
http://www.simoesdeassis.com.br