De capital da esperança à cidade com problemas: o arquiteto Luiz Gustavo Sobral Fernandes analisa relatos sobre a capital federal brasileira entre 1957 e 1973
Entre 1957 e 1973, três concepções distintas marcaram as leituras que vários autores diferentes fizeram de Brasilia, a capital federal brasileira, inaugurada em 21 de abril de 1960. Num primeiro momento, ela foi relatada como a cidade da utopia, a capital da esperança. Depois, surgiram várias interpretações distintas sobre o que a recém-construída capital federal era.
Por fim, veio a cidade real, repleta de problemas. Esses apontamentos são do arquiteto Luiz Gustavo Sobral Fernandes em sua pesquisa de mestrado. O estudo encerra a análise com um livro de 1973, escrito por uma historiadora das cidades, e que faz uma leitura panorâmica da capital federal brasileira. “É uma pesquisa para olharmos Brasília não apenas como um objeto de arquitetura, mas sim como um fenômeno ampliado do que foi o Brasil dos anos 1950, 1960 e 1970”, destaca o pesquisador.
Inaugurada pelo então presidente Juscelino Kubitschek, Brasília acabou se tornando uma referência para a arquitetura mundial. O arquiteto Lúcio Costa foi o ganhador do concurso que definiu o projeto urbanístico da cidade, conhecido como Plano Piloto. As edificações foram projetadas por Oscar Niemeyer, arquiteto já renomado internacionalmente na época da construção da cidade.
A pesquisa foi realizada a partir da busca em acervos de bibliotecas da USP e da Universidade do Texas, em Austin (Estados Unidos), onde desenvolveu parte do estudo. O local, segundo o pesquisador, possui um vastíssimo acervo sobre o Brasil. Ao analisar mais de 200 livros e outras obras que fazem referência a Brasília publicadas entre 1957 e 1973, Luiz Gustavo encontrou três recortes temporais distintos desse período.
A cidade utópica – A primeira fase vai de 1957 até 1961: desde quando a cidade ainda não existe de fato e está sendo construída, até pouco depois da inauguração. Nesse momento, Brasília é uma promessa que se realizaria. As publicações a retratam como a cidade da utopia, a capital da esperança, o Brasil moderno, que vai alçar o desenvolvimento nacional, que vai fazer a marcha para o oeste brasileiro, a capital dos verdadeiros bandeirantes.
“São trabalhos muito apologéticos, uma defesa apaixonada. Não são trabalhos de historiadores, mas sim de alguém que está se propondo a convencer o leitor de que Brasília é um acontecimento para a história brasileira”, explica Luiz Gustavo.
Desse período, ele destaca a Revista Brasília, publicada pelo governo federal, e que tinha o objetivo de divulgar a cidade para os brasileiros, além de um vasto material, que inclui discursos do presidente JK, notícias de jornais do exterior e catálogos em inglês voltados para o público estrangeiro.
Na Universidade do Texas, o arquiteto encontrou, em grande quantidade, livros de relatos de pessoas que participaram da construção da capital federal brasileira: jovens que se estabeleceram em Brasília, o ex-candango que venceu na vida, histórias das mulheres pioneiras na capital federal, entre outros.
Outras interpretações – A partir de 1961 começaram a surgir trabalhos diferentes, interpretativos. É o caso de um livro escrito pelo arquiteto Henrique Mindlin, publicado em 1961, com textos de conferências que ele ministrou em Londres. Mindlin coloca a cidade dentro de uma genealogia de discussão do que foi a arquitetura moderna no Brasil.
Outro caso é um livro de Gilberto Freyre. Na interpretação do sociólogo, Brasília é um objeto deslocado da realidade brasileira, e ela deveria adentrar um pouco mais na complexidade cultural do Brasil. “Enquanto Mindlin fala que Brasília é o produto de um Brasil real, colonial, que tem ligação com as raízes brasileiras, Freyre diz que não, que trata-se de uma cidade feita por dois únicos arquitetos”, explica Luiz Gustavo.
A cidade com problemas – A partir de 1965 até 1970, Brasília deixa de ser um sonho. Surgem trabalhos de sociólogos, de geógrafos, de economistas. E esses profissionais ou são muito críticos ou querem olhar se existe algo ou se as relações são diferentes. Desse período, o pesquisador destaca um livro do sociólogo José Pastore. “Ele olha para o homem habitando Brasília querendo saber se a sociabilidade e as relações de trabalho são diferentes. É um olhar para a cidade real: o que ela é, e o que ela prometeu”, conta.
O arquiteto cita ainda um evento ocorrido em 1971, no Senado Federal, para discussão dos problemas urbanos de Brasília, e que contou com a presença de Lúcio Costa, além de senadores e outros políticos. E qual era o principal problema? As cidades-satélite, que surgiram no entorno da capital federal desde a construção da cidade. Elas não estavam previstas no plano original, mas algumas foram desenhadas pela Novacap, a companhia estatal criada para execução das obras da nova capital. Outras questões discutidas foram a mobilidade e problemas dentro dos espaços coletivos.
A historiadora de cidades – A pesquisa termina com a análise de um livro da pesquisadora Norma Evenson, professora emérita de História da Arquitetura da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos – uma urbanista que trabalha com história das cidades. A publicação, de 1973, fala do processo de transferência da capital federal brasileira do Rio de Janeiro para Brasília.
O pesquisador considera essa obra muito importante pois ela traz uma leitura bem panorâmica da capital federal. “As outras publicações ou são apologias ou narrativas pessoais ou interpretações. Já esse livro foi produzido por uma historiadora e é isso que diferencia o trabalho dela dos outros. E é uma pesquisa muito bem feita, pois Norma cita muitos dos outros autores citados na minha pesquisa”, diz.
No livro, Norma destaca a importância dos militares para a consolidação da nova capital, além de estudar os projetos enviados para o concurso, entre outros temas. Alguns capítulos são bastante críticos. Segundo Luiz Gustavo, é um trabalho muito interessante, e que, ainda hoje, está presente nos livros de arquitetura.
A pesquisa foi realizada no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) de São Carlos da USP, sob orientação do professor Carlos Alberto Ferreira Martins. Parte do estudo foi feito na Universidade de Austin, no Texas, Estados Unidos, com supervisão do professor Fernando Luiz Lara.
A pesquisa Nobre Bastarda: As leituras e os leitores de Brasília (1957.1973), foi apresentada ao IAU em 2019. O trabalho será publicado como livro, com previsão de publicação no próximo mês de abril. Ouça, no link abaixo, entrevista concedida pelo arquiteto ao programa Novos Cientistas, da Radio USP FM.
Fonte: Valéria Dias / Jornal da USP
Contato:
Arquiteto Luiz Gustavo Sobral Fernandes
luiz.gustavo.fernandes@usp.br