Enchentes expõem riscos da ocupação desordenada de espaços urbanos no Brasil
As recentes enchentes no Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais trouxeram à tona os riscos do crescimento desordenado das cidades brasileiras e as vulnerabilidades decorrentes desse modelo frente aos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes.
Profissionais de Arquitetura e Urbanismo são unânimes em afirmar que, ao lado de questões ambientais relacionadas à deterioração do meio ambiente, a falta de planejamento urbano nas cidades é uma das grandes responsáveis por episódios e morte todos os anos.
Segundo dados do Censo do CAU/BR, apenas 5,29% dos arquitetos e urbanistas estão presentes no setor público. Quando se trata de planejamento urbano, o percentual é ainda menor: 3,99%.
“Tragédias como essas mostram a importância dos arquitetos e urbanistas como agentes de transformação da sociedade. São profissionais capazes de pensar as cidades para que as minorias não sejam relegadas ao abandono e às periferias. Precisamos entender e exercitar nosso papel de agentes construtores das cidades, lutar por elas e batalhar diuturnamente por saúde, saneamento e bem-estar de todos”, enfatiza a presidente da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA), Eleonora Mascia.
Para o secretário de Políticas Públicas e Relações Institucionais da FNA, Patryck Carvalho, trata-se de um planejamento urbano que deixa uma parte muito significativa da população de fora do acesso a moradias e bairros adequados.
“São milhões de famílias que não têm condições de adquirir uma casa em bairros urbanizados, mas precisam se virar sozinhas para morar em algum lugar. E esses lugares, geralmente, são as áreas desprezadas pelo mercado imobiliário, justamente por conta das restrições para ocupação humana: áreas de morros e encostas, beiras de rios, manguezais e etc. É justamente nessas áreas que os eventos climáticos extremos deixam os maiores rastros de destruição, vitimando com mais força as famílias mais vulneráveis”, aponta o arquiteto.
De acordo com ele, esse cenário não se trata de falta de planejamento, mas da adoção consciente de modelos de planejamento que colocam no centro da agenda urbana os negócios e os lucros e não o bem-estar das cidades e pessoas.
“É preciso que a sociedade e a mídia parem de tratar esses eventos somente como tragédias ambientais, pois são resultado também das nossas escolhas coletivas”, defende. Para ele, “os padrões de ocupação territorial e de crescimento das cidades, vendidos como se fossem o único padrão possível, têm intensificado os desastres urbanos”.
Segundo a arquiteta e urbanista e coordenadora da Comissão de Políticas Públicas do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/MG), Cláudia Pires, o processo de urbanização brasileiro visa, historicamente, a pavimentação de “tudo que é possível” e com isso acaba ocorrendo a sobrecarga de rios das cidades.
“As tragédias mostram o descompromisso dos nossos agentes públicos com o desenvolvimento de uma política de planejamento urbano”, ressalta Cláudia. De acordo com ela, não há uma discussão dentro dos governos municipais, estaduais e federais sobre a importância da habitação como função estruturante do espaço.
Pelo contrário, não existe hoje, de forma efetiva, nenhum financiamento público para habitação ativo no Brasil. O resultado disso é a população morando do jeito que consegue e sofrendo graves consequências, inclusive durante a pandemia.
Frente aos frequentes casos registrados todos os anos durante o verão, a pergunta que fica é: o que poderia ter sido feito para evitar essa e outras enchentes? Se impedir fenômenos naturais é inviável, é essencial estar preparado para eles.
A diretoria do IAB indica que cada vez mais é necessária a ação de arquitetos e urbanistas junto aos movimentos sociais, sindicatos e sociedade, tanto em atuação com benfeitorias quanto como agentes de esclarecimento e luta por mais políticas públicas que permitam maior investimento nas obras de infraestrutura das periferias das grandes cidades.
“A maior parte das cidades sofre com alagamentos e o problema não é da chuva, é da falta de capacidade da infraestrutura instalada de conter os avanços da urbanização em regiões impróprias”, afirma Cláudia.
Isso poderia evitar problemas como o ocorrido na casa de Roberval Improta. Morador da comunidade do Tororó, em Salvador (BA), Improta foi um dos milhares de habitantes da Bahia atingidos pelas chuvas neste verão.
“As enchentes já eram um problema antes, mas agora se tornaram um problema muito maior”, relata ele, lamentando o fato de as águas estarem invadindo residências e estabelecimentos comerciais.
Improta teve a casa e o carro alagados, sem contar os ratos e insetos que se proliferam todos os dias na região. “Já peguei até dengue por causa da situação da comunidade que estamos vivendo”, conta o baiano.
Improta é uma das milhares de pessoas afetadas pelas fortes chuvas em vários estados brasileiros. No estado de São Paulo, por exemplo, 39 municípios foram atingidos por transtornos provocados pelo mau tempo, como alagamentos, queda de árvores, queda de muros e deslizamentos.
A Defesa Civil do estado confirmou 34 óbitos em razão das chuvas e cerca de 5.770 mil famílias ficaram desabrigadas. Em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, a situação é ainda pior. Até a tarde de terça-feira (22/02) já tinham sido registrados 182 óbitos e mais de 90 pessoas continuavam desaparecidas.
Implementação da Athis é opção – Uma das opções levantadas por profissionais de arquitetura e urbanismo para enfrentar a situação é a implementação efetiva da Lei de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (Lei Federal nº 11.888/2008).
Apesar de estar vigente há mais de 10 anos, poucas iniciativas foram efetivas. Cláudia Pires explica que, com a ATHIS, os municípios podem contratar arquitetos e engenheiros para colaborar na reconstrução das moradias destruídas nas enchentes.
“A presença desses profissionais garantirá que as construções não sejam realizadas em lugares passíveis de alagamento no futuro, além de promover a conscientização sobre o direito de moradia na população. A habitação de qualidade é um direito constitucional”, relembra.
É preciso também inverter as prioridades de investimentos nas áreas urbanas, com ações de urbanização e eliminação de áreas de risco nos bairros precários das grandes cidades, garantindo bons projetos, recursos financeiros e controle social dos gastos.
A retomada da produção em escala de moradias bem localizadas, subsidiadas e acessíveis à população de baixa renda é necessária. Também é fundamental que a legislação urbanística brasileira, especialmente o Estatuto da Cidade, seja efetivamente aplicada para que a realidade das cidades sejam transformadas.
Mas para tirar os princípios e diretrizes do papel, levando-os para o chão das cidades brasileiras, precisamos colocar as questões urbanas no centro da agenda de desenvolvimento do país.
“Em ano de eleições federais e estaduais, devemos exigir dos candidatos propostas e compromissos com uma agenda urbana sustentável e inclusiva”, pontua Patryck Carvalho.
Contato:
Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA)
(61) 98361-1145
http://www.fna.org.br/