As manifestações sociais gritam pela escuta, pelo debate, pela participação, e simbolizam o anseio da população para ver as normas jurídicas saírem do papel / Por Rafael Negreiro Dantas de Lima

Não há mobilidade urbana sem participação social

O envolvimento da população nos processos decisórios de definição das políticas de mobilidade urbana, incluindo-se os reajustes de tarifa ou a opção por ampliação da malha viária, é elemento-chave para a mudança da cultura em relação a trânsito, transporte e mobilidade, pois inicia o empoderamento das pessoas em relação a debates que nunca foram de apropriação geral.

O fortalecimento de conselhos, a realização de oficinas, consultas e audiências públicas, a realização de medidas de educação em mobilidade, a disponibilização ampla e irrestrita de dados de forma simplificada, são todas medidas garantidoras da participação popular que devem ser vistas como direitos da população e vinculativas aos gestores públicos.

A legislação brasileira passou por alterações importantes nos últimos anos em relação ao transporte público. A exigência trazida no Estatuto da Cidade, a partir do ano de 2001, de que as cidades com mais de 500 mil habitantes deveriam ter um plano de transporte urbano integrado, compatível com o Plano Diretor, estabeleceu as bases para que se pensasse o transporte como um atributo das cidades, onde o grande objetivo não é o deslocamento de pessoas de um lugar a outro, mas possibilitar o acesso aos bens e serviços para todos os cidadãos de forma eficiente.

A partir do suporte do extinto Ministério das Cidades para a elaboração de planos de mobilidade, tivemos como resultado a produção de inúmeros planos municipais de mobilidade e, no ano de 2012, a promulgação da Lei nº 12.587/2012, que, ao instituir a Política Nacional de Mobilidade Urbana, conferiu segurança jurídica para a implementação de políticas que priorizassem os serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado.

Além disso, a Política, junto com o Estatuto da Cidade, trouxe previsões expressas de instâncias de participação popular, como audiências e consultas públicas e conselhos, além de fixar o princípio de que a cidade deve ser gerida democraticamente. Mas, isso não foi suficiente para dar força e voz aos anseios populares.

O debate sobre mobilidade e transporte público, de fato, ganhou espaço na sociedade brasileira nos últimos anos, sendo a força geradora de diversos protestos e reivindicações populares. No entanto, esses permanentes conflitos urbanos que continuam recorrentes nas cidades refletem a divergência entre o direito escrito e a realidade de uma cultura administrativa e jurídica muito aquém do previsto nas nossas reconhecidamente avançadas e modernas leis. As manifestações sociais gritam pela escuta, pelo debate, pela participação, e simbolizam o anseio da população para ver as normas jurídicas saírem do papel.

Sem participação social, o Direito é insuficiente na democracia

A construção nacional de textos normativos, portanto, avançou em uma lógica de inversão de prioridades, enraizando no mundo jurídico a utilização das instâncias de participação social pela administração pública. Entretanto, o Direito não é o grande indutor de transformações sociais. A participação social conversa diretamente com a democracia, um tema sobre o qual precisamos sempre falar e a respeito do qual devemos fazer constante reflexão.

Se pensarmos que o contrato administrativo é tradicionalmente visto como formado por duas partes – poder público concedente e concessionária – devemos também ter em mente que ele se destina ao usuário final, que é a sociedade. No caso do transporte público coletivo, os passageiros. Por esse motivo, e porque o usuário é quem paga a maior parte da tarifa, a sociedade deve ser parte do contrato de forma a torná-lo triangular, o que acontece somente com a população debatendo por meio das instâncias oficiais de participação.

Ainda que se possa dizer que o poder público representa a sociedade no contrato de concessão, o poder executivo é eleito por voto majoritário que acontece a cada quatro anos e, como se sabe, a democracia não se esgota no voto, cabendo a todos nós acompanhar, fiscalizar e participar de todas as decisões tomadas pelo eleito ou eleita ao longo do seu mandato.

Algumas das formas de exercer a democracia, no caso da mobilidade urbana, é ser parte dos conselhos, ir às audiências públicas para ouvir e ser ouvido e contribuir em consultas públicas, ou seja, é estar presente nas instâncias oficiais previstas em lei criadas para ouvir e debater com a sociedade.

Se a lei já prevê essas instâncias, então falta o que na prática? A sociedade já entendeu o seu papel e quer participar. Quando as instâncias oficiais lhe são fechadas, a população vai para as ruas para ser ouvida. O outro lado que precisa mudar a sua mentalidade e enxergar que o debate com a sociedade, que é a titular do poder, tem que ser constante, e não acontecer somente a cada quatro anos.

Rafael Negreiros Dantas de Lima é Defensor Público do Estado de São Paulo, Coordenador-Auxiliar do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e membro do BrCidades.

Fonte: IBDU / http://www.ibdu.org.br