Cinema 1 – A filosofia francesa sempre deu contribuições notáveis para a reflexão estética. Se Merleau-Ponty modificou nossa visão da pintura de Cézanne,

Deleuze, imagem-movimento e imagem-tempo

e Sartre nosso entendimento da literatura de Flaubert, Gilles Deleuze realiza nos dois volumes que dedicou ao cinema o mais impressionante esforço filosófico para a compreensão da arte por excelência do século XX. Em Cinema 1 — A imagem-movimento, Deleuze cria novos conceitos a partir das ideias pioneiras de Bergson e da semiótica de Pierce. A argumentação, porém, nunca perde de vista o específico das escolas e dos estilos cinematográficos e, sobretudo, os filmes eles próprios. O arco de diretores é amplo e reúne gigantes como Chaplin, Eisenstein, Ford, Bergman e Hitchcock, passando por expoentes da vanguarda como Viértov e Michael Snow.

Neste panorama, a erudição apaixonada de cinéfilo é potencializada por análises que, em seu conjunto, se apoiam no que de melhor produziu a crítica cinematográfica francesa, veiculada notadamente em revistas como os Cahiers du Cinéma e em monografias que se tornaram clássicas. Com este livro, a que se segue Cinema 2 — A imagem-tempo, Deleuze faz do cinema uma forma de pensamento, renovando nossa experiência diante da tela.

Texto de orelha – Ao retomar as teses de Henri Bergson desenvolvidas em A evolução criadora (1907) e confrontá-las com as proposições de Matéria e memória (1896), Deleuze estabelece uma classificação dos signos — inspirada na lógica triádica de Peirce — e uma estilística — baseada nos atos singulares de criação dos cineastas — em torno das três variedades da imagem-movimento. Feito de cortes móveis da duração, gerados pelo enquadramento e pela decupagem (e reunidos pela montagem), o cinema é a arte que pôs o movimento na imagem e no espírito.

Na imagem-percepção, nosso corpo funciona como tela negra ou obstáculo opaco que recorta e seleciona a luz, que se propagava livremente em todas as direções do universo. Já na imagem-ação abre-se um hiato espaçotemporal entre aquele que observa e o mundo observado, que se encurva, agindo sobre nós, e sofrendo também nossa reação. A imagem-afecção, por sua vez, ocupa o intervalo entre o sujeito e o mundo; não se guiando nem pela percepção nem pela ação, ela se expressa numa superfície imobilizada.

As qualidades e potências da imagem-movimento se manifestam de três maneiras: apreendidas “de dentro” dos fenômenos percebidos; expressadas por si mesmas, fora das coordenadas espaçotemporais; ou atualizadas num espaço-tempo determinado. Mas, entre a qualidade pura da imagem-afecção, exposta em espaços quaisquer, e o realismo da imagem-ação, cercada por um meio social e histórico determinado, surge a imagem-pulsão, vinda de um mundo originário próprio do naturalismo.

A partir dessa conceituação, Deleuze procede a um admirável estudo das múltiplas formas assumidas pela imagem-movimento. Ele começa pela escola francesa do pré-guerra, com seu fascínio pelo estado líquido da imagem (Epstein, L’Herbier, Grémillon, Vigo e Renoir); passa pelo cine-olho de Dziga Viértov (com a câmera que instala a percepção no seio da matéria) e alcança o estado molecular da imagem — anterior ao olhar humano — produzido pelo cinema estrutural (Brakhage, Snow, Belson e Jacobs).

Em seguida, o filósofo visita os autores que fizeram do rosto a matéria fílmica que expressa o afeto como uma entidade complexa, animada por singularidades: ele inicia pelo contraste entre Griffith e Eisenstein, passa por Sternberg e Pabst e se detém nos grandes cineastas da rostidade: Bergman, Dreyer e Bresson. Já a imagem-pulsão será contemplada nos filmes de Buñuel, Stroheim e Losey, com seus personagens regidos pela violência e pela crueldade de bichos humanos.

No âmbito da imagem-ação, um meio, um estado de coisas ou um espaço-tempo determinado, com suas forças, encurva-se sobre o personagem e o desafia, à maneira de um duelo ou de um embate. Um vasto repertório de gêneros e autores aparece aqui: o documentário (Flaherty), o filme psicossocial (King Vidor e Elia Kazan), o filme noir (Hawks e Huston), o western (Ford, Hawks, Anthony Mann, Sam Peckinpah), o filme histórico hollywoodiano (Cecil B. De Mille), a comédia americana (Lubitsch) e o burlesco (Chaplin, Keaton, Harold Lloyd). Realizadores de outros contextos também são convocados, como Herzog, Kurosawa e Mizoguchi, até se chegar àquele que levou a imagem-movimento ao seu limite: Hitchcock, o cineasta das relações mentais.

Por fim, Deleuze argumenta que a crise da imagem-ação e o limite do cinema americano anunciava outra coisa: o automovimento das imagens deixava de apresentar o tempo indiretamente e fazia surgir uma imagem-tempo direta, tal como experimentamos no neorrealismo italiano e, um pouco mais tarde, na nouvelle vague. É a partir deste ponto que o filósofo escreverá o segundo volume dessa reflexão: Cinema 2 — A imagem-tempo. / César Guimarães

Cinema 2 — A imagem-tempo completa o projeto de Gilles Deleuze para fazer da sétima arte uma forma de pensamento. Nele, o filósofo deixa o território diversificado da arte cinematográfica clássica, predominante em A imagem-movimento e que já havia atingido o ápice na virada da década de 1930 para a de 1940, para mergulhar em filmes deliberadamente fora dos enquadramentos dessa linguagem. O marco histórico foi a Segunda Guerra Mundial, que havia levado a experiência humana a extremos nunca antes vistos; e o marco estético foi o neorrealismo italiano, criação original em meio às ruínas da guerra, ambos exemplificados magistralmente nos filmes de Roberto Rosselini.

Segundo Deleuze, nessa dupla passagem o cinema vai da imagem-movimento para a imagem-tempo, da linearidade para a descontinuidade, dos cortes racionais para os irracionais, muitas vezes dissociando imagem e som. O arco de estilos e linguagens é bastante amplo: de mestres precursores como Yasujiro Ozu, Luis Buñuel e Orson Welles, passando pela comissão de frente da nouvelle vague, até Glauber Rocha, ponta-de-lança de uma cinematografia revolucionária na periferia do sistema de produção, mas com alcance estético mundial.

Texto de orelha – Quando, após a Segunda Guerra Mundial, as imagens cinematográficas passam a ser encadeadas por cortes irracionais e o tempo deixa de decorrer do movimento, surgem os signos ópticos e sonoros puros, desprendidos das situações sensório-motoras.

É o neorrealismo italiano que inaugura um cinema do vidente, quando a personagem, incapaz de reagir ao que lhe acontece, torna-se o espectador paralisado diante de uma realidade intolerável, bela ou horrível demais. São as heroínas de Roberto Rossellini em Stromboli e Europa ’51 que melhor exprimem a nova condição, em que a imagem vista se conecta ao sonho, à lembrança ou ao pensamento (mas eles ainda constituem circuitos muitos amplos em torno da imagem atual).

Quando se atinge o circuito mais estreito entre o atual e o virtual — o que tornará indiscerníveis o objetivo e o subjetivo, o real e o imaginário, o físico e o mental — forma-se um cristal de tempo, que não remete mais nem à consciência nem ao estado psicológico da personagem. O que vemos na imagem-cristal é o tempo em pessoa, como nos filmes de Werner Herzog, Andrei Tarkóvski, Max Ophüls, Jean Renoir, Federico Fellini e Luchino Visconti. No cristal o tempo se bifurca e jorra em duas direções: a dos passados que se conservam e a dos presentes que passam, segundo as formulações de Henri Bergson em Matéria e memória (1896).

Surgem daí os lençóis do passado, como no cinema de Alain Resnais, e as pontas do presente, como no de Alain Robbe-Grillet. Ao criar uma descrição que vale pelo seu objeto e uma narração livre do modelo da verdade, o regime cristalino da imagem conduz às potências do falso, como na obra de Orson Welles, em que estão presentes falsários e simuladores.

O tempo, no entanto, não se torna sensível sem que o pensamento ganhe uma nova configuração. O personagem vidente, imobilizado diante do que vê — como uma múmia — transforma-se no autômato espiritual, atingido pelos choques que alcançam o córtex. Tendo perdido seu vínculo sensório-motor com o mundo, o autômato subjetivo inaugura tanto um cinema do espírito (Antonin Artaud, Carl Dreyer, Éric Rohmer) quanto um cinema do corpo (Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Carmelo Bene, Andy Warhol e John Cassavetes).

Como crer neste mundo, sem recorrer a uma transcendência política ou religiosa? De agora em diante, o cinema — inclusive em sua vertente abertamente política —, a exemplo de Jean-Marie Straub/Danièle Huillet e Glauber Rocha, se valeria de composições inéditas entre o ato de fala, o ato sonoro e o ato musical, montados de maneira disjuntiva, como em Marguerite Duras ou Hans-Jürgen Syberberg.
Tendo abandonado a figura do todo aberto, próprio da imagem-movimento — objeto do livro Cinema 1, que precede este volume —, atraído por um fora que não era mais o do fora de campo, governado pelo discurso indireto e a visão livres, o cinema permitia ao espectador experimentar, enfim, de dentro, diretamente, as múltiplas formas do tempo, tornadas visíveis e sonoras. / César Guimarães

Sobre Deleuze – Gilles Deleuze nasceu em 1925, em Paris. Estudou no Liceu Carnot e depois filosofia na Sorbonne, onde obteve o Diploma de Estudos Superiores em 1947. Entre 1948 e 1957 lecionou nos liceus de Amiens, Orléans e no Louis-Le-Grand, em Paris. Trabalhou como assistente em História da Filosofia na Sorbonne entre 1957 e 1960, e foi pesquisador do CNRS até 1964, ano em que passou a lecionar na Faculdade de Lyon, lá permanecendo até 1969. De 1969 a 1987, deu aulas na célebre Universidade de Vincennes, um dos polos do ideário de Maio de 1968, quando firmou a sólida e produtiva relação com Félix Guattari de que resultaram os livros O anti-Édipo (1972), Kafka (1975), Mil platôs (1980) e O que é a filosofia? (1991). É autor também de obras fundamentais como Diferença e repetição (1968), Lógica do sentid o (1969), Cinema 1 — A imagem-movimento (1983), Cinema 2 — A imagem-tempo (1985) e Crítica e clínica (1993), além de estudos sobre Hume, Kant, Bergson, Nietzsche, Espinosa e Foucault, entre outros. Faleceu em Paris, em 1995, e é hoje considerado um dos mais importantes filósofos do século XX.

Sobre a tradutora de Cinema 1 – A imagem-movimento – Stella Senra é pesquisadora, ensaísta e professora na área de cinema. Com tese sobre o Cinema Novo brasileiro, doutorou-se pela Universidade de Paris II em 1976. Fez pós-doutorado em 1985 e 1986 na Universidade de Paris VII, e foi professora do departamento de jornalismo e do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (1981-1995). Traduziu Cinema 1 — A imagem-movimento, de Gilles Deleuze (Brasiliense, 1985) e O amor dos começos, autobiografia do psicanalista J. B. Pontalis (Globo, 1988), e é autora do livro O último jornalista: imagens de cinema (Estação Liberdade, 2000).

Sobre a tradutora de Cinema 2 – A imagem-tempo – Eloisa Araújo Ribeiro nasceu em Belo Horizonte e vive no Rio de Janeiro. É graduada em Artes Cinematográficas pela Universidade de Paris VIII — Vincennes-Saint-Denis, e obteve o título de mestre em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo com dissertação sobre o escritor suíço-alemão Robert Walser. Traduziu, entre outros: Cinema 2 — A imagem-tempo, de Gilles Deleuze (1990); O que é o cinema?, de André Bazin (1990); O sequestrado de Veneza/Veneza, de minha janela, de Jean-Paul Sartre (2005); e Novelas (2006), O despovoador/Mal visto mal dito (2008) e Textos para nada (2015), de Samuel Beckett.

Fichas:
Cinema 1 – A imagem-movimento
Gilles Deleuze
Tradução de Stella Senra
Coleção Trans
344 p. / 14 x 21 cm / 378 g.
ISBN 978-85-7326-710-5
R$ 62,00 / Comprar

Cinema 2 – A imagem-tempo
Gilles Deleuze
Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro
Coleção Trans
424 p. / 14 x 21 cm / 460 g.
ISBN 978-85-7326-711-2
R$ 68,00 / Comprar

Serviço:
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