AirBnB: do compartilhamento do quarto vazio à exploração por empresas / Por Bianca Tavolari

Usos comerciais do AirBnB

A ideia original era bastante simples, até mesmo modesta. Com dificuldades para pagar o aluguel, três jovens decidiram usar colchões infláveis guardados e oferecer a sala de sua casa em São Francisco como espaço de hospedagem. Era outubro de 2007 e um congresso internacional lotava a maioria dos quartos de hotel da cidade, o que garantiu a atratividade da oferta.

Como os colchões eram de ar, Brian Chesky, Nathan Blecharczyk e Joe Gebbia chamaram a empreitada de “AirBed and Breakfast”. Um pouco mais de uma década depois, o AirBnB é um dos principais representantes do que costumamos chamar de “economia do compartilhamento”, com valor estimado pela Forbes em US$ 38 bilhões em 2018, com bancos, empresas de serviços financeiros, fundos de venture capital e private equity entre seus principais investidores.

Se o princípio é simples – rentabilizar os espaços vazios ou subutilizados de casas e apartamentos –, o modelo de negócio que alçou o AirBnB a “empresa unicórnio”, com valor de mercado superior a US$1 bilhão, não é nada trivial. A tecnologia da plataforma permite que quartos e unidades inteiras sejam alugadas para além do círculo mais imediato de amigos e vizinhos, algo que a socióloga norte-americana Juliet Schor chama de “stranger sharing”.

A inovação tecnológica permite uma ampliação exponencial de escala: a plataforma oferece mais de 6 milhões de quartos, casas, apartamentos e espaços inusitados de hospedagem – como castelos e iglus – em mais de 81 mil cidades ao redor do mundo. O aumento da escala também muda a qualidade das relações intermediadas pelo AirBnB, trazendo inúmeras novas questões à tona.

Alguns críticos enfatizam a distância entre as propostas originais de aplicativos como Uber e AirBnB e o que se tornaram hoje. Em 2015, Giana Eckhardt e Fleura Bardhi afirmavam, na Harvard Business Review, que a “economia do compartilhamento” acabou por não ter nada que ver com o compartilhamento propriamente dito.

Alugar um quarto por meio do AirBnB estaria menos relacionado a práticas de consumo coletivo e consciente ou à criação de novos laços de confiança e muito mais ao consumo de um bem por um preço mais baixo e, claro, ao lucro da transação comercial. Assim, “economia do compartilhamento” seria uma expressão enganosa.

Alguns autores têm preferido falar em “capitalismo de plataforma”, “economia de acesso”, “capitalismo de multidão” ou “gig economy”. Independentemente do nome que decidirmos utilizar, uma das principais questões é saber como essas plataformas estão ditando um novo modelo de negócios, provocando mudanças estruturais que ainda não são completamente visíveis ou compreensíveis em seu todo.

Usos comerciais do AirBnB – “Nós certamente acreditamos – e os dados confirmam – que o AirBnB é uma plataforma para a classe média. Ela está gerando uma renda suplementar para famílias comuns.” Esta declaração de Chris Lehane, diretor de global policy da empresa, apresenta o modelo de anfitrião da concepção original: casais com quartos sobrando depois que os filhos cresceram e saíram de casa, famílias com um quartinho ou sofá-cama extra.

O que antes era apenas um espaço de sobra passa a se tornar um ativo passível de exploração, ajudando a pagar as contas do fim do mês. Seria uma plataforma da classe média – e não de todas as classes – porque, para se tornar um anfitrião, é preciso ser proprietário ou sublocar apartamentos alugados. São famílias e pessoas com alguma estabilidade social marcada pela propriedade ou pelo aluguel de longo prazo, mas não ricos o suficiente para recusar o dinheiro a mais para receber estranhos em suas casas.

Mas a afirmação de Lehane conta apenas uma parte da história. Já em 2014, o procurador-geral da cidade de Nova York, Eric Schneiderman elaborou um relatório que mostrava o uso intensivo da plataforma por empresas. Por mais que os usuários comerciais fossem a minoria em termos numéricos (6% do universo de anfitriões), eles dominavam o mercado de aluguel de curto prazo intermediado pelo AirBnB. Entre 2010 e 2014, estes usuários receberam US$168,3 milhões e concentraram mais de 177 mil reservas em suas unidades. Um único usuário concentrava 272 unidades, um perfil certamente muito diferente da “família comum” que precisa de renda extra.

Como a plataforma não diferencia entre pessoas físicas e pessoas jurídicas (ou pessoas físicas que atuam como pessoas jurídicas), o problema tem aparecido em diversas cidades. Reportagem de maio de 2019 da Folha de São Paulo mostra que os principais anunciantes do AirBnB em São Paulo e no Rio de Janeiro são empresas.

Agências de viagens, imobiliárias, pessoas físicas e mesmo empresas criadas especialmente para gerir apartamentos por meio da plataforma concentram números elevados de unidades: “Hipoteticamente, se esses nove anunciantes profissionais tivessem alugado todos seus imóveis no período avaliado [4 de fevereiro a 15 de abril de 2019], teriam arrecadado juntos meio milhão de reais em um único dia”, diz a matéria.

Start-ups de gerenciamento de propriedades anunciadas no AirBnB já atuam em diferentes cidades europeias, utilizando algoritmos para tornar o negócio ainda mais eficiente.

A transformação é tão grande que, recentemente, a rede hoteleira Marriott anunciou que irá desenvolver um serviço semelhante ao AirBnB, chamado Homes & Villas, focado no compartilhamento de propriedades de luxo.

A atratividade vem principalmente de dois fatores: flexibilidade para gerenciar os contratos de curto prazo e ausência de regulação específica. Se comparado com a locação residencial de longo prazo, o AirBnB se mostra muito mais dinâmico. É possível definir o número de dias de hospedagem, cobrar mais caro em feriados e em temporadas de maior procura e até mesmo recusar hospedagem a qualquer momento.

Já um contrato de locação de longo prazo costuma ter prazo mínimo de 30 meses, é reajustado por índices estabelecidos vinculados à inflação e confere uma série de direitos aos inquilinos.

Já a ausência de regulação específica faz com que estes usuários comerciais não paguem os impostos cobrados da rede hoteleira ou das imobiliárias. Aqui no Brasil, a indústria hoteleira já reivindica isonomia na tributação em uma ação no Supremo Tribunal Federal que pede que a parte correspondente à locação das diárias de hotel não seja tributada com o ISS (Imposto Sobre Serviços), da mesma maneira que o AirBnB não é tributado.

Mas o uso comercial não se limita ao uso da plataforma por empresas e à criação de serviços de apoio à gestão de imóveis que já existem. Em São Paulo existem iniciativas de empresas da construção civil focadas em moradias temporárias. You, Paladin, Vitacon e TPA já estão construindo empreendimentos residenciais destinados a moradores que não são fixos. O modelo de negócio varia entre as construtoras, mas plataformas como Booking e AirBnB são utilizadas para anunciar as unidades.

Assim, estamos diante de uma tendência de transformação dos próprios produtos imobiliários para atender à flexibilidade e à rentabilidade dos aluguéis de curto prazo popularizados e intermediados pelo AirBnb.

Apesar de a plataforma reivindicar um papel de mera intermediação entre usuários, sem qualquer função hoteleira e imobiliária, o AirBnB vem fazendo aquisições que consolidam a atividade comercial como parte de seu core business e não como uma espécie de desvio de uma proposta original. Neste ano, a empresa comprou o HotelTonight, um aplicativo para encontrar quartos de hotel com descontos.

O aplicativo trabalha em parceria com grandes redes hoteleiras, como Sheraton e Hyatt. Também em 2019, o AirBnB comprou o site Gaest.com, de aluguel de salas para reuniões e eventos corporativos. No ano passado, adquiriu a empresa francesa Luckey Homes, especializada em gestão imobiliária. O AirBnB também figura como investidor da OYO Rooms, uma start-up indiana que opera uma rede de hotéis de baixo custo e de outros possíveis concorrentes no ramo de aluguéis temporários, como o site Lyric.

Problemas para as cidades – Para além dos problemas de competição e tributação que surgem da desestabilização dos mercados tradicionais de hotelaria e de corretoras imobiliárias (AirBnB versus hotéis e corretoras), as questões mais urgentes surgem do impacto que o modelo do AirBnB tem no mercado residencial de longo prazo nas cidades. Um apartamento ou uma casa inteira alugado para turistas por meio da plataforma deixa de ser alugado via lei de locação para moradores locais, que vão viver anos naquela unidade.

O uso comercial do AirBnB acentua ainda mais este aspecto, já que as empresas que atuam na plataforma não vão oferecer um quarto em um apartamento com mais pessoas ou colchões de ar numa residência estudantil, mas uma unidade inteira.

Muitas cidades turísticas já estão diante de graves problemas de moradia. Como os incentivos para alugar pela plataforma são muito altos, principalmente em bairros bem localizados, com equipamentos culturais e infraestrutura consolidada, há uma diminuição da oferta de unidades de locação de longo prazo nestes lugares.

Diversos estudos e denúncias de movimentos sociais indicam que esta substituição também provoca um aumento generalizado nos preços dos aluguéis, expulsando os moradores indiretamente.

O AirBnB tem dado respostas contraditórias ao uso comercial da plataforma. Em Nova York, depois de uma queda de braço com a prefeitura e autoridades locais, o AirBnB implementou a política “one host, one home” [“um anfitrião, uma casa”], limitando o número de anúncios por usuário e removendo os usuários que anunciavam mais de um imóvel.

Por outro lado, a empresa anunciou, ainda neste ano, que irá mudar a estrutura de suas taxas para atrair hotéis e pousadas: “Em vez de sua configuração tradicional, pela qual os anfitriões pagam uma taxa de 3% e os hóspedes até 20% da tarifa de pernoite, os hotéis e empresas de hospedagem independentes vão pagar uma taxa ‘exclusiva do anfitrião’ de 14% a 20% sem qualquer despesa para o hóspede.”, diz a matéria do Financial Times também publicada pelo Valor Econômico.

A batalha para restringir os usos comerciais na plataforma está apenas começando. O exemplo de Nova York mostra que não será fácil. A câmara municipal da cidade aprovou uma lei que obrigava o AirBnB a divulgar, mensalmente, os dados das unidades alugadas, os endereços e valores pagos por diária. Um juiz decidiu pela inconstitucionalidade da lei, afirmando que a prefeitura não havia dado justificativas suficientes para pedir dados confidenciais da empresa. Tudo indica que será uma briga longa. Por aqui, a discussão ainda mal começou.

Bianca Tavolari é professora do Insper e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP.

Fonte: LabCidadeUSP / http://www.labcidade.fau.usp.br