Câmeras de reconhecimento facial no espaço público usam dados sem nossa autorização / Por Raquel Rolnik e Leonardo Foletto

Detecção facial no espaço público

Andar pela cidade sem ter sua identidade arquivada e ofertada ao mercado faz parte do direito à propriedade que cada um tem de seu corpo e movimentos

No final de junho, o Metrô de SP anunciou uma licitação para implantar de novo sistema de monitoramento eletrônico por imagem de suas estações, trens e áreas de operação nas linhas 1-Azul, 2-Verde e 3-Vermelha. No edital, estão previstas a ampliação de seu parque de câmeras dos atuais 2.200 para 5.200, a troca dos equipamentos analógicos por digitais, incluindo câmeras de reconhecimento facial, e a centralização do comando das câmeras em uma única central – hoje, isso ocorre espalhado pelas estações da companhia.

A iniciativa de usar câmeras de reconhecimento facial pelo Metrô de São Paulo se conecta com diversas outras que estão sendo implementadas em âmbito global a partir da popularização do que se chama de big data – a coleta e processamento de milhares de dados produzidos a todo instante em âmbito digital.

Na China, por exemplo, já existem sistemas de reconhecimento facial em diversos lugares públicos, de aeroportos a sanitários, que são inclusive permanentemente relacionados com outros, ligados à escolaridade, consumo, deslocamentos e outras informações, de forma a constituir um “ranking” que permitirá – ou não – o acesso dos cidadãos a serviços públicos e locais privados conforme a pontuação de cada um.

O argumento que vem sendo usado para disseminar esta tecnologia – e seu potencial cenário distópico – é sobretudo calcado na segurança. Mecanismos de reconhecimento facial podem identificar criminosos ou terroristas, detectar invasão de áreas e depredadores de equipamentos.

O Metrô ainda justifica o uso destes equipamentos em sua potencialidade de localizar pessoas desaparecidas. Foi com essas justificativas que iniciativas, em caráter de teste, foram realizadas no Carnaval de 2019 no Brasil, em Salvador e no Rio de Janeiro.

Na capital baiana, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia prendeu uma pessoa que, fantasiada de melindrosa de cabaré e com uma metralhadora colorida de brinquedo na mão, foi vista pelas câmeras pulando carnaval no circuito Barra-Ondina. Era um foragido por homicídio com arma de fogo, que após ter sua imagem identificada pelas câmeras e cruzada com o banco de dados de procurados e foragidos da Bahia, foi abordado e preso pelos policiais militares da cidade.

Já no Rio de Janeiro, as câmeras foram testadas em Copacabana também durante a final da Copa América, no entorno do Estádio do Maracanã, mas já apresentaram problemas: uma mulher chegou a ser detida após ser identificada – erroneamente – como uma criminosa que estava no banco de dados da polícia fluminense.

A implementação de câmeras de reconhecimento facial em espaços públicos tem levantado alguns questionamentos. O primeiro se refere à propriedade e uso dos dados coletados por este meio: onde ficam armazenadas as informações? Para que fins serão usadas? Quem são seus proprietários?

Em São Paulo mesmo, houve o caso recente da ViaQuatro, que administra a linha 4-Amarela do Metrô, e que anunciou que suas câmeras, instaladas nas portas de vidro das plataformas das estações, estavam identificando a reação dos passageiros às publicidades que estavam sendo exibidas. Os dados das câmeras conseguiam detectar se, por exemplo, o usuário fazia uma expressão “feliz” ou “triste” quando via alguma publicidade no metrô.

Tabuladas e sistematizadas, estas informações poderiam ser repassadas às empresas para aprimorar as imagens e textos de seus anúncios. O Idec entrou com uma ação civil pública contra a empresa, alegando que a venda desses dados para potenciais anunciantes é ilegal. Caso o usuário da Linha 4-Amarela não queira ter as informações coletadas, a única opção dada pela ViaQuatro é de usar outro meio de se locomover pela cidade.

“É uma pesquisa de opinião forçada que viola a Constituição e várias leis federais e uma prática que vai na contramão da nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)”, diz o advogado Rafael Zanatta, à época pesquisador do IDEC.

A LGPD, promulgada em 2018, foi sancionada recentemente por Bolsonaro e entra em vigor em 2020. Inspirada na GDPR (Lei Europeia de Proteção de Dados), ela deveria garantir mais transparência no uso e o armazenamento de dados pessoais na internet, mas ainda há brechas que permitem exceções.

É o caso das câmeras: há uma cláusula que diz que dados coletados não estão sujeitos à lei se forem usados para fins de segurança pública. Entretanto as empresas que ganharem a licitação certamente utilizarão estas informações para vendê-las para anunciantes – o que configura, ao nosso ver, uma apropriação indevida de informações que pertencem a cada um dos cidadãos, não à empresa e nem ao governo.

Outro aspecto é o tema da cidade permanentemente vigiada, seus residentes controlados, impedindo, na prática, o anonimato e a privacidade. Ora, justamente o anonimato e a privacidade da metrópole foram a grande transformação dos modos de vida, permitindo pela primeira vez uma vida sem os controles sócio-políticos das pequenas comunidades.

Este foi o grande tema dos sociólogos da vida urbana na virada do século 19 para o século 20, quando o fenômeno da grande cidade emergiu como uma ruptura – libertadora – dos modos de organização sócio territoriais anteriores.

Andar pelas ruas, calçadas e espaços públicos de uma cidade sem ser identificado é uma conquista tornada possível com a urbanização em grande escala: se misturar à massa de pessoas sem ter sua identidade definida e rastreada faz parte do direito ao anonimato e à propriedade que cada um tem de seu corpo e movimentos. O que, constituiu em sua gênese, um dos fundamentos da democracia.

Não por acaso, foi com este argumento que a Câmara de Supervisores de São Francisco, semelhante à Câmara de Vereadores, decidiu banir o uso das câmeras de reconhecimento digital em espaços públicos numa das primeiras cidades onde elas foram implementadas nos Estados Unidos. Para os legisladores de São Francisco, é possível ter segurança sem implementar um estado policial de vigilância total.

Está claro que as empresas que oferecem os sistemas de reconhecimento digital estão procurando mercados no Brasil para expandir seus negócios. Antes de adotar um caminho cercado de muitas dúvidas e que toca em direitos fundamentais de cada cidadão, as prefeituras e governos estaduais têm a obrigação de responder aos questionamentos sobre o uso das câmeras de forma transparente.

Por sua vez, os moradores das cidades e seus representantes políticos não podem simplesmente abrir mão de amplo e informativo debate sobre o tema antes de tomar uma decisão sobre sua implementação.

Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade
Leonardo Foletto é jornalista, doutor em comunicação (UFRGS) e coordenador de comunicação do LabCidade

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Raquel Rolnik
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